domingo, 13 de novembro de 2011

O poeta Humberto de Campos

O poeta Humberto de Campos

Rogel Samuel

Conta no “Diário secreto” Humberto de Campos que seu projeto de vida literária era outro, ele sonhava em realizar uma obra poética e crítica, vasta e uniforme, cujas bases foram fundadas pelo seu livro “Poeira” que tanto sucesso alcançou no Brasil e em Portugal.
Mas as obrigações da família o fizeram dedicar-se à imprensa, onde ele passou a escrever os contos e crônicas, miúdas e humorísticas, e que o popularizaram e que foram publicados em vários livros de alta vendagem, dando-lhe dinheiro e fama, fazendo-o deputado e membro da Academia.
Se ele tivesse ficado com seu versos e ensaios não teria conseguido ser o escritor mais lido do Brasil de seu tempo.
O mesmo aconteceu com Coelho Neto, que queria ser historiador e não jornalista, contista, cronista e depois romancista, tendo de escrever mais de 100 livros para ganhar a vida.
NOTA: Na foto o edifício do Largo do Machado (n. 21) morou Humberto de Campos no fim da vida. Chamava-se na época "Palácio Rosa". O escritor morreu em 1934, num hospital. Foto de R. Samuel, via celular.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

FOTO HISTÓRICA (MANAUS 1965)



DA ESQUERDA PARA A DIREITA: ARNALDO REBELO, JORGE TUFIC, THIAGO DE MELO, FRANCISCO VASCONCELOS, ELSON FARIAS E MOACIR ANDRADE (MANAUS, 1965)

GLEEN GOULD


GOULD



Rogel Samuel





Ouço, obsessivamente ouço, e repetidas vezes, o Concerto nº 1 BWV 1052 de Bach com Gleen Gould. Ele o tocou pela primeira vez em Toronto, 1955, e a partir de então, também, por mais de 30 vezes, repetiu a obra. A gravação, que ouço, é a de 1957, Mono, Columbia Symphony Orchestra. E Bernstein. Também possuo outra, da Internet, em MP3, de que nada sei porque nada é dito, cujo tempo me parece um pouco mais rápido, e as «loucuras» de Gleen Gould mais radicais, como as «invenções», «modificações», caminhando da lucidez, da precisão clássica/barroca para a variação jazzística, nas suas ondulações sonoras, intermináveis e recalcitrantes. A gravação da Internet desse Concerto obsessor deve ser a mesma e está, entretanto, incompleta, faltando alguns minutos do segundo movimento, o «Adágio».

Gould fez sucesso obstinado com este concerto.

Em Leningrado, diz Otto Friedrich, seu biógrafo, lugares extras foram colocados no palco, 1.300 assentos foram vendidos, 1.000 ingressos de lugares em pé (!), e mesmo policiais tiveram de ser convocados para conter a multidão, que se comprimia do lado de fora, sem poder entrar. Até os músicos da orquestra que não foram convocados se acotovelavam na coxia para ovacionar o pianista. Rebentaram as palmas. Explodiram vivas. Lançaram-se flores. Ele ficou assustado: «Foi opressivo e amedrontador», disse, depois.

            Ele parecia criança quando esteve pela primeira vez com Leonard Bernstein. Existe aquela famosa foto sua com o maestro americano: Gould belo menino, em transe, os cabelos cobrindo os olhos, e Bernstein de cabeça baixa, sério. «Ele realmente fez coisas maravilhosas no Concerto em Ré de Brahms», disse. Mais tarde, em gravação que tenho, dádiva do pianista americano Christopher Schindler, o criticou o maestro em público, pois o pianista forçou leitura lentíssima do Concerto de Brahms com a Filarmônica de Nova Iorque. Mas, depois de ouvir várias vezes, começamos  a sentir que é assim mesmo, naquele tempo lento, que o grande Concerto deve ser ouvido. Na época, Gould foi duramente criticado. Disseram justamente até que ele atrasou o tempo porque não era capaz de superar as dificuldades técnicas de execução. A crítica bateu feio nele e ele sentiu a pancada. Parece que ficou ferido. Por outras razões abandonou o palco. Criticavam os seus trejeitos malucos ao piano, as suas contorções, caretas e tudo mais.  Falavam de sua vida sexual, se seria ou não homossexual, da sua indumentária horrorosa, dos seus medos e fobias, das doenças imaginárias. Gould tinha dos concertos uma idéia pejorativa, dizia daquilo uma competição, exibicionismo, aparição moralmente má. Do tipo: «Devo decorar esta frase elegantemente para o concerto». O pianista no palco ia participar de um show que era uma luta por uma espécie de prêmio mundano, cheio de desafios, disputas, rivalidades, tão longe da transcendência em que mergulhava – a música uma espécie de religião, meditação, êxtase e orgasmo. Não, nada de exibição de virtuose. Mesmo com orquestra, ele é um «solista», em meditação. A orquestra, um acompanhamento. Ali não emerge o ego de um virtuose. O concerto não deveria ser uma batalha entre o piano e a orquestra [apud Michael Stegemann], um espetáculo de arena. Gould rejeitava a idéia do psicanalista Stevens de que os virtuoses educam a sensibilidade do público. Ele foi «o último puritano», se referindo a si próprio tomava emprestado o título da novela de George Santayana. «Esta era a visão da arte como instrumento de salvação, e dos artistas como seus advogados missionários», disse Stegemann. Arte como educação espiritual e meditação. Elevação mística. Tal Ragas orientais.

Enfim recolheu-se à solidão dos mosteiros, digo, estúdios, à sua casa, aos seus passeios de carro, às suas noites solitárias, em que importunava os amigos com longos telefonemas, durante horas, em que ele freneticamente falava sem parar.

O tempo lento do Concerto de Brahms me lembra a gravação, lentíssima, de Celibidache da Sinfonia Novo Mundo de Dvorak. Dura 113 minutos. É magistral. Celibidache velho, velhíssimo, rege, pesadamente sentado na cadeira, economiza gestos, mas poderoso, e sua música aparece como uma despedida, adeus. Ele, antes tão exuberante, dramático, que pulava e bailava no pódio, agora sentado, poupa-se, transformando a Novo Mundo em sua transcendência para a nova vida, a morte.

 Pois Gould era realmente, absolutamente louco. Louco como só os gênios o podem ser.

Ele teve dificuldades em gravar com orquestra.

Disse: «...meu problema com orquestra é econômico... com orquestra, seja o que for que você tenha de fazer, só dispõe da orquestra no estúdio por um limitado número de horas... se tiver sorte pode fazer duas ou três gravações... mas quando estou numa sessão solo posso fazer nove ou dez gravações» diferentes, para escolher uma, a melhor.

Ele somente teve dois mestres: Alberto Guerrero e sua mãe, Florence. «Tudo o que há para saber sobre piano pode ser ensinado em menos de meia hora», dizia.

Sim, dizia. Ele.



                                   *   *   *



Antes do Concerto de Brahms, a fala de Bernstein para o público é a seguinte, resumida: «Eu estava com medo de que o Sr. Gould estivesse no piano agora... eu não costumo falar antes de concerto... mas vocês vão ouvir uma performance nada ortodoxa do Concerto de Brahms... eu não posso dizer que concordo com a concepção do sr. Gould... uma questão interessante é: por que eu vou reger assim?... é porque o sr. Gould é um artista tão valioso e sério, que tudo que ele concebe é interessante suficientemente para ser ouvido. Mas uma questão continua: Quem num concerto é o patrão? O solista ou o maestro? A resposta é... algumas vezes um, outras vezes outro... depende das pessoas envolvidas.. entretanto... eles têm de trabalhar juntos... de convencer um ao outro pelo carisma, pelo charme ou por um pacto para atingir uma performance unificada... mas essa é a primeira vez que eu me submeto à vontade de um solista para fazer algo completamente incompatível e esta é a última vez que acompanho o sr. Gould...».

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A ESTRANHA CIDADE DE MANAUS

 



A ESTRANHA CIDADE DE MANAUS



Rogel Samuel



Manaus é uma cidade estranha. Por tudo. Ali uma estátua da Justiça tem nas mãos uma balança que pende mais para um lado do para que o outro. Aparece em cima do imponente prédio do Tribunal da Justiça, construído por Eduardo Ribeiro, o construtor da cidade. Aquele que fez o Teatro Amazonas. Quando naquela cidade – dizem – se acendiam os charutos com dinheiro.

E assisto, debaixo de uma chuva miúda, ao escritor Marcio Sousa subir a rua Saldanha Marinho, no dia das mães. Agora mora lá, no centro da cidade. Ele, famoso escritor, voltou.

Quando estive em Portland, acompanhado do pianista Christopher Schindler, e de sua mulher, a artista plástica Chrystal Zachary, fui à melhor livraria da cidade.

O único escritor brasileiro que ali encontrei foi Márcio Sousa.

Sim, Manaus é uma cidade estranha.

Já foi mais bela, menos quente.

Segundo se diz, um prefeito de Manaus, hoje nome de bairro, mandou cortar milhares de árvores que embelezavam as ruas e nos davam sombras.

Eram mangueiras asiáticas, fícus indianos. Desapareceram. Segundo ele, sujavam a cidade. Estavam infestadas de insetos, «lacerdinhas».

Por isso, quando, ao sair para caminhar na raiz daquelas ruas, eu canto de Luiz Bacellar a Balada da rua da Conceição (hoje rua Isabel) no devaneio do percorrer as instabilidades pós-industriais, reinventando a cidade dos meus dias de infância na grande Dúvida,



(Mas será mesmo que existe

essa rua na cidade?

ou é rua da Conceição

no velho Cais da Saudade?)



Aquelas são ruas de uma metafísica urbana transfigurante, reflexos das garrafas estilhaçadas, das letras enferrujadas, que etiquetavam o nome, o sobrenome dos ricos, dos becos, dialeticamente traçados no alargamento de uma cidade em interna ruína (mas inteiro espetáculo), nos axiomas da decadência da economia da borracha no Amazonas.

A cidade guardou no interno intestino o esplendor dos velhos e áureos momentos que Bacellar nunca cantou ("nunca escrevi um poema sobre o Teatro Amazonas", - disse-me ele).

Mas, nas árvores, cansadas, as epifanias, as trilhas, as colhidas, os duendes, os enforcados, os relatos, os obstáculos, os saberes, as caras, o antes, as obsessões citadinas, a onisciência, os pássaros e papagaios de papel, a Neca, a verdade certeira, a prudência, a vigilâncias, o risco, o dragão, a vida cartesiana: fatos acumulados em "lírios" e "peitinhos", "rosa menina", que levam a marca de saias levantadas da imensa tradição de uma sociedade fossilizada no Século Dezenove.

Lá estão todos os meus fantasmas infantis.

A razão humana abandona para sempre aqueles versos de finados, de fraque, de orações pressurosas, de sepulturas e beatas cobertas, "de cera e de fogo", em que se constitui o livro de Luiz Bacellar.

Podemos dizer que, fora das páginas de Bacelar, a cidade de Manaus nem mesmo existe.

Como na «Balada das 13 casas, são 13 casas unidas, nascidas no mesmo lance de rua, com as mesmas paredes-meias, os mesmos oitões de taipa, a mesma fachada nua e as mesmas janelas tristes de 13 casas na rua.



NOTURNO DO BAIRRO DOS TOCOS

Há tanta angústia antiga em cada prédio!
Em cada pedra nua e gasta. E agora
em necessário pranto que demora
o amargo verso vem como remédio


pelos sonhos frustrados em cada hora
da ingaia infância. Madurando o tédio
nos becos turvos, porque exige e pede-o
inquieta solidão que assiste e mora


em cada tronco e raiz, calçada e muro:Chora-Vintém, O-Pau-Não-Cessa* . Impuro
se derrama um palor de lua morta


nas crinas tristes, no anguloso flanco:
memória e angústia fundem-se num branco
cavalo manco numa rua torta.

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