TEATRO AMAZONAS
Rogel Samuel
1. O TEATRO VAZIO.
O deputado Fernandes Júnior chegou cedo ao
prédio da Assembléia Legislativa Provincial, que ainda estava fechado. Ele
entrou pela porta lateral, reservada aos faxineiros, secretários, auxiliares
administrativos.
Era
uma bela manhã de maio de 1881. O deputado trazia consigo o rascunho do texto
que mudaria a história do Amazonas, pois prometera à sua mulher, D. Auxiliadora
de Nazaré, que levantaria o pleito de se construir um teatro de alvenaria para
a cidade de Manaus.
A cidade
dispunha de três espaços para espetáculos: o “El Dorado”, o “Éden-teatro” (um
barracão de madeira) e uma sala no Edifício da Beneficência Portuguesa, onde se
representou “São Benedito”, uma peça popular.
Na noite
anterior, no Éden, a exigente D. Auxiliadora assistira “Ghigi”, de Gomes de
Amorim, e anteriormente a “Justiça”, de Camilo Castelo Branco, em 1869.
A vida em
Manaus era elegante, rica, alegre, no início do apogeu de uma sociedade que
enriquecia rapidamente, com a extração da borracha. Fernandes Junior e sua
mulher viviam em festas, piqueniques e espetáculos teatrais. Os salões de sua
casa se abriam todas as semanas, nas noites das sextas-feiras, para receber os
amigos. Nos domingos, numa grande mesa, sob o caramanchão do jardim, era
oferecida uma tartarugada, ou uma peixada, almoço festivo regado a vinho
português, sucos de diversas frutas, compotas de doces e banhos nas águas
limpas do igarapé que passava atrás da casa.
Aquilo ia até
ao anoitecer. Lima Silva, Alarico José Furtado (presidente da província do
Amazonas), Emílio Moreira, João Coelho e outros freqüentavam aquela mesa, com
esposas, filhos, babás e empregados, congestionando a rua da Conceição, onde
morava o deputado. Entre os convidados, o rico comerciante Manuel de Oliveira
Palmeira de Menezes, chefe da casa Menezes, Gomes & Cia, o primeiro
contratante da obra de construção do teatro, que depois passou para Alexandre
Dantas e passou para Rossi & Irmãos da Itália, todos impossibilitados de
realizar a obra pelos 493 contos contratados.
Fernandes
Júnior era um dândi, simpático, educado, conhecia Paris, tinha refinamento,
elegância e alguma cultura, principalmente de autores portugueses. Seu projeto
era bem modesto, de apenas 60 contos de réis, para a construção de um teatro.
Aprovaram em 120 contos. Mas as obras pararam. Quase dez anos paradas. E
chegaram a milhões de contos de réis. Foi uma obra faraônica, uma das maiores e
mais dispendiosa obra da República, até hoje. Fernandes Junior faleceu no
Maranhão, no dia 24 de abril de 1894, treze anos depois de ver o seu Teatro
construído com grandes, gigantescas modificações. Chegou a ver o Teatro
Amazonas “erguido e em pleno apogeu”, como escreveu sobre ele Mário Ypiranga
Monteiro.
Anos depois, em
1995, estando Paravotti no Brasil, fez questão de ir a Manaus apenas para
conhecer o Teatro, que foi aberto somente para ele. Cantou para o Teatro Vazio.
Em 1996, foi a vez de José Carreras. O
Teatro, entretanto, estava lotado.
2. NATAL DE 1900
Noite escura.
Francisco
Ferreira de Lima Silva naquela escura noite vinha subindo a escadaria do
imponente palacete onde morava Waldemar Scholz e que muitos anos depois foi
transformado no “Palácio Rio Negro”, sede do Estado do Amazonas, no governo de
Alcântara Bacellar.
Lima
Silva envergava terno de linho bege, chapéu de palhinha, gravata borboleta de
seda azul-claro, sapatos de verniz, pretos. Elegante.
Vinha pensando, distraído, imaginando no que o
velho Waldemar Scholz lhe tinha reservado, pois o riquíssimo Scholz era
generoso, e na noite de Natal dava presentes caros. Trazia para o dono da casa
um livro de contos, “Diferentes”, de 1895, de Quintino Cunha, que ainda morava
em Manaus e depois publicaria, em Paris, o seu famoso livro de versos “Pelo
Solimões”, em 1907, pela Livraria J. Aillaud. Quintino Cunha em Paris era amigo
de Aillaud e de Faguet, da Academia Francesa
Para o Natal
só, Scholz convidara para a ceia um grupo seleto: Lima Silva, novamente
separado da mulher; o maestro Adelelmo do Nascimento, mulato, cultíssimo,
violinista, voltava de Paris; Antonio Bittencourt, pai do professor Agnello
Bittencourt, que tinha chegado do Ayapuá, no Purus, onde tinha uma mansão, e
poucos outros.
Lima Silva era
jornalista e fez carreira política em Manaus. Escreveu “Efemérides do
Amazonas”, em 1884, gigantesca obra que permanece inédita e talvez se tenha
perdido. Escreveu também um livro sobre os movimentos revolucionários. Foi
deputado estadual, federal e participou do movimento de deposição de Gregório
Thaumaturgo de Azevedo, Governador do Amazonas, quando Lima Silva saiu ferido.
Homem de oposição, de luta, da esquerda da época. Thaumaturgo foi deposto,
Guilherme Moreira assumiu, pois era o vice, e em poucos dias entregou o governo
para Eduardo Ribeiro, o segundo vice.
A paixão
dominava Lima Silva. Apesar de casado, pai de duas filhas, o amor por Marinalva
o enlouquecia, cabocla pequena, leviana,
sensual. Silva não sabia o que fazer. Marinalva o traía “até com os
trapixeiros!”, pensava Silva, com ódio.
Ao chegar à
porta do palacete Scholz parou e esperou que lhe abrissem. Um empregado,
caboclo forte, meio índio, veio abrir:
- Pode entrar,
disse o homem.
Na noite
anterior, Silva estivera com Marinalva. Junto dela perdoava tudo. Era capaz de
beijar seus pés, que aliás eram bonitos. Marinalva tinha os cabelos negros,
lisos, brilhantes, a pele bronzeada, os seios pequenos. Olhos de índia, de
onça, a cor variava pelo amarelo-ouro-esverdeado, cor indefinível, falsa,
perigosa. Marinalva, ela dizia que se chamava assim. Mas como tudo nela era
possível, ele não sabia se era verdade. Ela dizia que tinha vindo do Amatari.
Não tinha documento. Quando Silva mandava fazer os documentos dela, Marinalva
os perdia. Silva a cobria de presentes, roupas e jóias, dizia que queria
casar-se com ela, abandonar a esposa, e de fato seria capaz de tudo para ficar
com ela. Ela se ria, jurava que sim, e no dia seguinte sumia na orgia da noite,
voltava bêbada e louca na manhã seguinte para aquela casa que Silva tinha
alugado para ela, na Cachoeirinha. Silva se desesperava, se odiava, jurava que
ia abandoná-la, deixava de vê-la, mas quando Marinalva estava sem dinheiro
aparecia no Foro, ou na Câmara, ou mesmo na porta da casa dele. Ameaçava fazer
escândalo. Silva segurava o seu braço e a tirava dali, e tudo acabava na cama,
ela gemendo, ele extasiado de prazer e de genuíno amor. Não, não tinha cura.
Por duas vezes separou-se da esposa, D. Cacilda, mulher de boa família, rica,
que tinha voltado para a casa dos pais por causa da Marinalva.
Lima Silva no hall de entrada
deixou o chapéu. Viu ali a famosa escadaria de madeira encaixada, famosa em
todo o mundo, sem coluna para sustento. Foi para a sala contígua, onde Scholz
costumava receber os visitantes e onde, anos depois, se faziam as reuniões de
governo. A decoração era impressionante.
Os quadros, os móveis, tudo revelava luxo e bom gosto. Da janela viu a vivenda
de pássaros amazônicos, de que Scholz tanto gostava. Pássaros raros, junto com
as orquídeas. Um dia, como ele se aproximou demais, uma garça do viveiro
perfurou-lhe o olho esquerdo e o cegou.
Era uma escura noite de Natal de
1900, pouco depois da morte do Governador Eduardo Ribeiro, em circunstância
misteriosa. Eduardo Ribeiro foi o construtor do Teatro Amazonas. Foi o construtor
de Manaus.
Scholz apareceu de roupa leve e
branca, pince-nez de ouro. Sentou-se solene em sua frente e disparou, à queima
roupa:
- Lima Silva, quem matou Eduardo Ribeiro?
Quando saiu do
palacete Scholz já de madrugada, Lima Silva foi para casa de Marinalva. Ela não
estava. Ordenou ao cocheiro que o levasse à praça de São Sebastião. Em frente ao Teatro Amazonas parou e saltou.
A igreja já estava fechada, a praça vazia.
Ele sentou-se na escadaria do Teatro. De longe, de bem longe, dos
limites da fímbria do horizonte, apareceu um vento úmido e morno, vindo da
Floresta, que passou como um fantasma, uivando nas alamedas do Teatro. Caía uma chuva fina.
Lima Silva foi caminhando, abandonado e só, em
direção à passagem do aterro onde depois se pavimentou a avenida Eduardo
Ribeiro.
Era a morte de Eduardo Ribeiro.
A morte de tudo. Poucos anos depois, a economia do Amazonas entrou em
decadência e ruína. Manaus foi
transformada numa cidade fantasma. O manto negro de uma recessão a cobriu
durante cinqüenta anos, povoando suas ruas uma legião de mendigos. O Teatro
Amazonas fechou as portas por meio século. Transformou-se em depósito de
borracha crua. Os espelhos de cristal, os quadros, as estátuas, as cortinas de
veludo, os lustres, os tapetes de linho, os jarros de porcelana, os móveis de
luxo, as mesas e cadeiras móveis foram roubados. A Floresta Amazônica ameaçava, na noite
escura.
3. JOSÉ PARANAGUÁ - 1882
O Presidente da Província José Paranaguá
andava de um lado para outro com aqueles papéis e um leque nas mãos. Era um
homem inquieto, nervoso, irritadiço, meio gago. Naquele momento tinha o projeto
da construção do teatro de alvenaria nas mãos.
Na sua frente, o deputado Fernandes Júnior o
olhava com admiração e reverência. Paranaguá era de uma das famílias mais
poderosas do país. O deputado aguardava, apoiado na mesa. Parecia calmo,
sorridente, gentil, servil, e esperava que Paranaguá não tivesse um ataque de
nervos, na sua frente.
No forte calor da tarde, o governador suado
agitava os papéis, o leque, levantando os braços no ar.
- Você tem razão, meu caro, disse Paranaguá,
ainda andando. “Você tem razão”. Ele tinha o hábito de repetir a mesma frase
duas vezes e gostava de falar andando. “Peripateticamente”, dizia ele.
- Mas... – disse ele.
E não concluiu.
Apertou a mão do deputado e o conduziu,
empurrando-o, até a porta.
- Eu o manterei informado, concluiu ele,
conduzindo o outro pelo braço, dando-lhe amistosas tapinhas nas costas,
enquanto punha Fernandes Junior gentilmente para fora.
José Paranaguá era um homem ilustre e poderoso
em todo o império.
- Mas o quê, Excelência? – perguntou o
deputado, já com o corpo todo fora do gabinete.
- O seu projeto é muito modesto... MUITO
modesto!
E voltando a abrir a porta do gabinete gritou:
- Eu o manterei informado. Eu o manterei
informado!
Logo que o deputado saiu, entraram João Antony
e Leovegildo Coelho. O governador os fez sentar e passou-lhes às mãos o projeto
de construção do Teatro Amazonas.
O Teatro Amazonas estava ali, posto em papel,
nascendo naquela mesa para ser uma casa de diversões de gente rica. Havia uma
sociedade recentemente enriquecida que necessitava canalizar suas energias em
festas, reuniões, diversão.
Logo após, em junho de 1882, quando o gigantesco
prédio ainda era um sonho, José Paranaguá sancionou a lei n. 567 de 10 de maio
de 1882 que despendia 10 contos de réis (uma fortuna!) no contrato de uma
companhia dramática. Mas ainda não havia
teatro.
José Lustosa da Cunha Paranaguá era filho do
Marquês de Paranaguá, Presidente do Conselho de Ministros do Brasil. Foi
Presidente da Província do Amazonas por dois anos. Chegou em Manaus no dia 17
de março de 1882. No dia 28 de maio do mesmo ano foi explorar a região de
Itacoatiara, acompanhado por Thaumaturgo de Azevedo e João Antony.
Thaumaturgo de Azevedo estudou na Escola
Militar de realengo, no Rio, e na Faculdade do Recife. Militar engenheiro e
advogado, chegou a general e a governador. Teve vida política agitadíssima,
cheia de altos e baixos.
João Antony era um engenheiro amazonense de
ilustre família. Foi político, desenvolveu uma carreira brilhante e honesta.
Era pai do poeta Américo Antony.
Em 1882 a comitiva de José Paranaguá saltou em
Amatari à procura do cemitério dos índios Miracauuêra. Em 12 de julho subiu o
Rio Negro. Explorou o rio Cuieires à procura dos índios Arauquis, dizimados em
1669 pelo Capitão Favela. Em 12 de setembro explorou o Baixo Amazonas,
acompanhado por comitiva da qual fazia parte José Veríssimo. Em novembro explorou o Purus. O governador
era um explorador. Detestava burocracia.
Foi na administração dele que se começou a construir o suntuoso Teatro.
A lei chamava concorrentes para a execução da planta e dotava 30 contos de réis
para o início das obras, não mais orçadas em 60, nem em 120... Mas em 250
contos de réis. Aquilo ficou esquecido
durante o resto do ano.
No ano seguinte, numa tarde de março de 1883,
estava reunida a comissão administrativa para a construção do Teatro numa sala
do segundo andar do prédio da prefeitura. A comissão, nomeada por Paranaguá,
era constituída por Leovegildo Coelho, João Antony e Charles Brisbin. Sentado
na cabeceira da mesa estava o presidente, Leovegildo, com a xícara de café na
mão.
- Há dois orçamentos para examinar, começou
ele.
Leovegildo Coelho era um baiano
grandão, forte, aparência militar. Era engenheiro. Nasceu pobre, criado por uma
família rica. Nunca conseguiu saber o nome de seus pais. Estudou em Salvador,
depois foi para o Rio de Janeiro, para a Escola Militar. Foi Alferes, serviu no
Amazonas, incorporado à “expedição científica”, sob a chefia de Gonçalves Dias,
que morou na rua Barroso onde hoje existe o prédio da Biblioteca Pública.
Gonçalves Dias depois foi inspetor escolar e Leovegildo Coelho indicado para
verificar o canal do Rio Negro do ponto de vista de sua navegação e fazer sua
cartografia.
Leovegildo Coelho era mulato. Foi um dos
auxiliares do governador negro, Eduardo Ribeiro, na construção de Manaus.
Delegado de polícia, deputado, senador e um dos signatários da Constituição
Brasileira de 1891. Participou do governo de Floriano Peixoto, de quem era
confidente e conselheiro. Deixou um alentado diário íntimo, ainda inédito e
nunca publicado, em três volumes, com informações secretas da vida da
República.
- Há dois orçamentos, disse Coelho. Um de
Celeste Saccardi, de 249 contos; outro do Gabinete Português de Engenharia de
Lisboa, de 500 contos.
João Antony ouvia em silêncio, o lápis
rodopiando na mão. A seu lado estava o gordo Charles Brisbin, sofisticado,
perfumado, com um polpudo lenço na lapela, cofiando o bigode grisalho.
Eles tinham de decidir da planta
e orçamento da construção do Teatro.
- Acho o projeto Saccardi o melhor e mais
barato, disse Coelho, estendendo o pescoço com um puxão.
João Antony pôs-se a examinar o projeto
Saccardi.
Depois de algum tempo, disse:
- Faltam as fachadas laterais - falou,
dirigindo-se a Coelho a todos.
Brisbin pôs o pincenê de ouro e se aproximou.
Os dois passaram a examinar aquelas folhas.
- Sim, falta também a fachada posterior, disse
Brisbin.
- Sim, respondeu Antony.
Leovegildo Coelho aproximou-se de onde estavam
os dois, e começou a balançar a cabeça, concordando.
- Também não vejo no orçamento o emboço, o
reboco e a pintura do edifício.
Examinaram os três.
- Falta o soalho e forro da platéia...
- E o ladrilho da entrada e do saguão...
- Falt o preço da mão de obra da cúpula...
Sucessivamente os defeitos de Saccardi foram
aparecendo:
- O preço do ferro não é esse, está muito
baixo, disse Brisbin, que era dono de uma construtora em Lisboa.
- O da alvenaria também, acrescentou Coelho.
Depois de um tempo, disse Antony:
- Mas como apoiar este projeto português, que
custa o dobro?
- Quanto custa?
- Quinhentos contos.
No dia seguinte foram os três ao gabinete do
Presidente da Província José Paranaguá.
Depois de ouvir a argumentação, disse o Governador:
- Como não, como não! – exclamou efusivo José
Paranaguá, batendo leque na palma da mão e assobiando uma polca. Vamos
aproveitar as condições prósperas da província! Não vamos adiar a obra! Não,
não! É uma necessidade para esta elegante cidade capital.
E depois de rodopiar com a polca pelo
gabinete, fez:
- Precisamos de um teatro. Precisamos de um
teatro! – e assobiou com mais força batendo palma.
E logo andando de um lado para outro, como
sempre fazia, disse em tom de doutoral:
- Vamos aceitar a planta portuguesa, vamos
aceitar, vamos tocar as obras, vamos tocar. Mandarei pagar um conto de réis por
esta planta.
E depois de mais uma caminhada de um lado para
o outro, agitando os braços, abanando o leque e assobiando a polca:
- Vamos agora escolher, imediatamente, o lugar
onde construiremos o nosso teatro! Vamos escolher! Agora! Vamos escolher!
E começaram a discutir entre si os diversos
lugares e depois escolheram. Mas escolheram mal, como se verá.
Mas foi assim que obras
começaram, não mais em 60, nem em 120, nem em 250, mas em 500 contos de réis.
E depois subiram a vários milhões.
4. A INAUGURAÇÃO
No dia 31 de dezembro de 1896 se inaugurou o
Teatro Amazonas.
Inaugurou-se com “La Gioconda”,
de Amilcare Ponchielli, sob a regência do maestro brasileiro Joaquim de
Carvalho Franco, que foi diretor da Academia Amazonense de Belas Artes.
Carvalho Franco nasceu em
Campinas, em 1858/59 e morreu em Manaus em 1927, onde se estabeleceu. Está
enterrado no cemitério de São João Batista.
“La Gioconda” era uma novidade. Em 1896. Sua
estréia mundial fora em 1876, com grande sucesso. A única das composições de
Ponchielli (1834-1886) a ter sucesso e a manter-se no repertório dos teatros
até hoje. Estreou no Teatro alla Scala de Milão, em 08 de abril de 1876 e
Ponchielli revisou a obra pelo menos três vezes até o final da vida.
“La Gioconda” está na transição entre o
romantismo e o realismo, reunindo elementos dos dois. Estilo de “grand-opera”
francesa, carregada de melodrama, a ambientação exótica, com um balé no meio do
espetáculo – a conhecida “Dança das Horas”, imortalizada por Walt Disney.
A ópera revela grandiosidade,
cenários luxuosos, efeitos de cena, como o incêndio do segundo ato, grandes
número de coro, orquestração densa. Exige um elenco de 12 cantores, seis dos
quais podem ser considerados principais, com pelo menos uma grande ária para
cada um deles.
Mas “La Gioconda” é precursora da escola
realista da ópera italiana, com o vilão Barnaba, teatral, mais declamado do que
cantado, e a violenta cena final, quando a protagonista comete suicídio num ato
de extremo desespero.
O libreto é de Arrigo Boito, um dos artistas
que fizeram a renovação do gênero. Mas Boito não acreditou no sucesso da ópera,
e preferiu assinar com um anagrama, Tobia Gorrio.
O soprano que interpretar Gioconda tem as
partes mais difíceis do espetáculo, cheio de recursos emotivos, alternando
sentimentos de ternura, amor, ódio e desespero. O soprano canta exaustivamente
nos três primeiros atos, antes de enfrentar o fim, no mais extremo esforço
cênico e vocal, quando está dentro de um palácio em ruínas e prefere
suicidar-se a ser morta.
É uma ópera cara, difícil.
A Gioconda de Manaus era Líbia Drog, soprano
dramática. Ela era uma italiana belíssima, cotada na Itália, na Espanha e em
São Petesburgo. Mas ficou famosa porque no Metropólitan Opera House, em
novembro de 1894, na ópera Guillermo Tell, esqueceu o texto da ária de Matilde
–Selva opaca - pondo em perigo toda a função.
Mas em Manaus ela teve uma
atuação impecável.
A multidão que assistia do lado de fora a
entrada dos convidados à inauguração viu chegar Raul de Azevedo e sua esposa,
Sara. O casal ficou a passear nos jardins do teatro antes de entrar, pois o
escritotor aproveitou para fumar.
A seguir apareceram Afonso de Carvalho, a
esposa e alguns amigos. Era um grupo animado. Entraram logo.
Logo veio Joaquim Cardoso Ramalho Junior, com
o filho (a esposa adoentada não veio). Mas quando apareceu Erico de Aguiar
Picanço todas as pessoas que assistiam a entrada exclamaram um “oh!” de
surpresa e admiração, pois Esmeralda Picanço portava as suas famosas
esmeraldas: era um colar e brincos de esmeraldas e diamantes famosos na alta
sociedade manauara, realçados pelo belo pescoço e o vestido de seda preta de
sua dona. O vestido não tinha nenhum bordado nem enfeite. As esmeraldas e
brilhantes iluminaram a entrada.
E assim foram chegando os convidados, que era
elite do Norte do Brasil. Um dos últimos a chegar foi o Governado Fileto Pires
Ferreira, com a esposa. E o último o ex-governador Eduardo Gonçalves Ribeiro,
aplaudido pelo povo que estava na rua, desprezado pelos convidados de dentro.
Eduardo Ribeiro, como sempre, veio com uniforme militar, acompanhado por dois
soldados. Entrou rapidamente, atravessou o hall sem cumprimentar ninguém, subiu
as escadarias com velocidade e sumiu no camarote. Os dois soldados não
entraram, ficaram de guarda, na porta.
O Teatro ainda não estava ainda totalmente
pronto. No “Salão Nobre”, em taças de cristal, servia-se o champanha La Grand
Dame Veuve Clicquo. E se fazia política, conspirava-se. Conspirava-se contra o
Governador Fileto Pires Ferreira, que já estava no camarote do Governo,
conspirava-se contra Eduardo Ribeiro, que se escondera na penumbra. Em sussurros, no pé do ouvido, algumas
figuras diziam: “- Fileto vai viajar para Paris...”
- Agora que Fileto e o negro estão rompidos é
hora de agir, disse o outro.
No início do espetáculo falou o Governador
Fileto Pires Ferreira, do alto do seu camarote central. Grande orador,
inflamado, de improviso, inaugurou o Teatro. Seu discurso foi recebido friamente
pela elite que já conspirava contra ele. E embora tivesse de relações rompidas
com o ex-governador, anunciou:
- Temos a satisfação de ver entre nós o grande
realizador da obra, o construtor deste imponente Teatro, o Governador Eduardo
Ribeiro.
Neste momento irrompeu uma
grande vaia, vinda de todos os lados.
E mais tarde, no meio da ópera,
na “Dança das horas”, ouviu-se alguém
gritar:
- É preciso eliminar o negro! – e uma
gargalhada geral.
Eduardo Ribeiro naquele momente se retirou e
nunca mais voltou ao teatro.
5. A OBRA MUDA DE LUGAR
O primeiro espaço escolhido para a construção
ficava no centro da cidade de Manaus. Área monstruosa. Ia da Conceição à
Comendador Clementino, ou seja, abrangia as atuais ruas Joaquim Sarmento, Eduardo
Ribeiro, Henrique Martins e Saldanha Marinho.
Vários terrenos foram desapropriados para isso. A rica província despendeu 11 contos. Projeto
faraônico. Entre 1880 e 1900 só se construiam obras gigantescas naquela cidade.
Governantes tinham muito dinheiro para gastar: Colégio Estadual, a Biblioteca
Pública, o Palácio do Governo, o Quartel, o Tesouro. E pontes, aterros, ruas,
estradas. Manaus se agigantava. Queria imitar Paris.
Depois da primeira escolha do terreno
começaram a comprar os materiais: aço, telhas, portas, janelas. Tinha-se de
nivelar a Praça Paissandu, que ficava na área. No orçamento de 1883-84,
dotava-se para as obras 80 contos. A construção foi contratada com o
comerciante Manuel de Oliveira Palmeira de Menezes. A planta era a portuguesa.
O contrato extenso, minucioso, publicado no jornal “Amazonas”, em 17 de outubro
de 1883. Mas o contratante, Manuel de Oliveira, passou o contrato para
Alexandre Dantas e esse para a firma italiana Rossi & Irmãos. Os Rossi
começaram as obras, modificando e encarecendo o contrato em mais 300
contos. Porém, de 1881 e 1884 pouco se
soube das obras de construção do Teatro Amazonas.
Em 85 foi votada uma lei que pedia mais 300
contos em apólices e mais 600 contos para a “conclusão” das obras do Teatro,
obras de canalização de “água potável”, ou seja, as obras acabavam subindo para
cerca de 1.250 contos.
Um dia, a Comissão Administrativa foi reunida
às pressas, por ordem do Secretário de Estado, o dr. Fileto Pires Ferreira. Ao
gabinete do Secretário compareceram Leovegildo Coelho, João Antony, Charles
Brisbin, o Dr. Canavarro, Diretor de Obras Públicas, e os representantes de
Rossi & Irmãos.
Fileto Pires Ferreira era o grande gerente do
Governo Eduardo Ribeiro. Virá ser o seu sucessor. Graças a ele, o governo pôde
fazer várias grandes obras ao mesmo tempo, combatendo a corrupção e fazendo
aquela cidade moderna no meio das selvas. Eduardo Ribeiro era um governador
incansável, mas tinha intermitentes surtos de loucura, demência e crises
nervosas, quando ficava irreconhecível, ansioso e agressivo. Naqueles momentos
Fileto Pires assumia e era imprescindível para organizar tudo e resolver a
crise. Ninguém sabia disso. Eduardo Ribeiro tinha completa confiança em Fileto
Pires. Fileto confiava no Governador. Fileto chegou até a deixar um papel
assinado em branco nas mãos de Eduardo Ribeiro, o que seria de conseqüências
catastróficas no futuro para Fileto. Este documento em branco assinado caiu nas
mãos dos adversários políticos quando Fileto era governador do Amazonas e
estava em Paris para tratamento médico. E ali forjada uma carta de renúncia ao
governo e Fileto foi deposto por um golpe branco.
Fileto Pires Ferreira era um homem elegante,
magro, culto, testa sonhadora, grandes bigodes tipo Nietzche e muito gentil com
todos ao redor. Alguns o chamavam de dândi, uma espécie de playboy da época.
Mas Fileto era um homem sério, de raciocínio rápido, matemático, positivo, e
acabou a vida como general, no Rio de Janeiro. Pertenceu ao círculo de jovens
oficiais que subiu ao poder após o 15 de Novembro no Brasil. Era natural do
Piauí. Nasceu em Barras, a 16 de março de 1866, filho do Capitão Raymundo de
Carvalho Pires e D. Lydia de Santana Pires. Fez seus estudos em Teresina e
iniciou sua formação militar em Porto Alegre, em 1884. Transferido no ano
seguinte para o Rio de Janeiro, veio a tomar parte da preparação do movimento
republicano de Benjamim Constant. Dirigiu um manifesto de solidariedade a
Benjamim Constant. A 15 de novembro de 1889, estava entre os oficiais da 2a
Brigada junto a Deodoro, para depor o Gabinete Ouro Preto, o que resultou na
proclamação da República do Brasil. Em 1890, Fileto foi mandado para o
Amazonas, para trabalhar com Augusto Ximenes de Villeroy, Governador nomeado
pelo Governo-Provisório, em substituição à Junta que assumiu o poder com a
proclamação da República. Ao chegar à Manaus, o tenente Fileto Pires foi
nomeado Superintendente Municipal de Tefé. Regressou ao Rio de Janeiro,
concluindo em 1891 sua formação militar, com o título de Bacharel em Matemática
e Ciências Físicas e Naturais. Temporariamente fora do serviço ativo do
Exército, esteve em Minas Gerais, como engenheiro ferroviário. Logo após o
golpe de Estado de Deodoro, Fileto Pires foi chamado ao serviço ativo do Pará.
Em viagem, soube da queda de Deodoro e ascensão de Floriano. Deste recebeu
ordem de seguir para Manaus. Assim Fileto Pires estava em Manaus quando foi
deposto o governador do Amazonas Thaumaturgo de Azevedo, que tinha aderido ao
movimento do Marechal Deodoro e agora se via incluído na lista negra dos
governadores a serem depostos no contra-golpe de Floriano. Thaumaturgo de Azevedo era da mesma cidade de
Fileto, Barras do Marataon, no Piauí. Thaumaturgo nasceu em 1853 e Fileto em
1866. Os dois se conheciam.
Gregório Thaumaturgo de Azevedo
foi o primeiro governador do Piauí, de 1889 a 1890. E governador do Amazonas de
91 a 92. Aborrecido com a luta política, demitiu-se do governo do Piauí depois
de um excelente governo. O seu secretário de governo era Clóvis Beviláqua.
Ofereceram-lhe o governo do Paraná. Recusou. Mas optou pelo Amazonas. Foi preso
por Floriano, reformado, deportado para a fortaleza de São Joaquim do Rio
Branco. Anistiado, voltou ao Exército, chefiou a Comissão de Limites com a
Bolívia, que nos deu o Acre.
“Thaumaturgo de Azevedo é um grande estadista
que merece ser reverenciado por todos os brasileiros”, escreveu Plácido de
Castro. Foi prefeito do Alto Juruá, fundador da cidade de Cruzeiro do Sul, e
Comandante da Brigada Policial do Rio de Janeiro. Ganhou a medalha de ouro
Simão Bolívar.
Eduardo Gonçalves Ribeiro substituiu
Thaumaturgo de Azevedo e assumiu o governo, a 11 de março de 1892. Convidou
Fileto Pires para ser secretário do Estado.
6. O SECRETÁRIO FILETO PIRES
FERREIRA
Fileto Pires Ferreira abriu solenemente os
trabalhos da Comissão Administrativa:
- Senhores, considero aberta a reunião.
Charles Brisbin interveio:
- Não vai esperar o Governador, senhor
Presidente? – sabendo que Eduardo Ribeiro estava temporariamente demente.
- O Governador não vem, disse Fileto. Toda a
responsabilidade é desta Comissão. Como sabem, os trabalhos da construção do
“Teatro Amazonas” já começaram e muito se gastou em terraplanagem, aterros e
compra de materiais. Várias casas foram demolidas e um exército de operários
especializados já se encontra morando em Manaus. As fundações estão sendo
escavadas, disse Fileto.
E fez uma pausa.
- Mas se descobriu que aquele
lugar é imprestável para erigir um edifício tão alto e pesado. Por ali passa um
rio subterrâneo e mais o Igarapé do Espírito Santo. A terra não é estável, não
é firme.
Fileto falava rápido e sempre encarava o seu
interlocutor, olhando-o nos olhos. Charles Brisbin cofiava o bigode com a mão
gorda. Estava sério, pensativo, preocupado. Imaginava: “vão pensar que este
teatro não sai, que nos vamos apropriar das verbas públicas...”
- Quanto já se gastou? perguntou Charles
Brisbin.
- Não sei, mas é fácil saber se fizermos uma
auditoria de tudo, respondeu Fileto, em tom firme.
Fileto era honesto e preocupado em preservar o
bem público.
- O que sei é que já se enterrou uma grande
fortuna ali, disse um certo Brabante, que até então se mantinha calado. “E isto
é muito grave”, concluiu.
- Também acho, disse Charles Brisbin. É muito
dinheiro para ser abandonado no fundo da terra.
- Não foi em vão, argumentou com autoridade
Fileto Pires. Aquela área está preparada para ser o centro da cidade. Vamos
abrir ali ruas e lotear os terrenos, ressarcindo os cofres públicos.
E olhou desafiadoramente para todos:
- Vocês não pensam que, por causa desse
problema, teremos de abandonar a idéia de construir o nosso teatro! E
acrescentou: “O Governador Ribeiro nem admite que se cogite esta idéia”.
Charles Brisbin pigarreou e
perguntou:
- É verdade que ele está doente?
- Está indisposto, respondeu Fileto, sem se
abalar, sabendo que Eduardo Ribeiro estava sedado por seus médicos e
atravessava mais uma de suas crises de depressão.
- Talvez fosse melhor dissolvermos esta
comissão, disse alguém.
Então Navarro de Almeida, diretor de Obras
Públicas, se irritou e gritou:
- Os senhores não podem fugir de suas
responsabilidades!
- Mas de quem é a responsabilidade, perguntou
Antony, quem é o responsável pela escolha errada que somente agora se revelou?
- Ninguém, respondeu Navarro. Era impossível
saber, antes das escavações. Para erigir um edifício daquele porte, um edifício
gigantesco, de pedra e ferro, o terreno tem de ser sólido. Estávamos
construindo o teatro sobre um pântano...
- De quem será a culpa e a responsabilidade
dos gastos indevidos? – perguntou Antony. Com o que já se gastou já se teria
construído dois ou três teatros do projeto original.
Todos se calaram, e olharam para João Antony.
A situação ficou tensa. Ameaçava explodir.
Fileto, então, interveio:
- Senhores, de nada adianta nós nos culparmos
de erros que não cometemos. Já disse que o Estado não teve nem terá nenhum
prejuízo. Todos os aterros realizados até agora serviram para estabilizar a
área do centro da cidade, e agora a cidade poderá ser construída num outro
patamar, e não sobre um pântano. Será construída no planejamento original de
Thaumaturgo de Oliveira. Será uma cidade moderna, a primeira a ter iluminação
elétrica no Brasil. Acertamos no que erramos. Vamos ser práticos e não
compliquemos as coisas mais do que já estão.
Fileto Pires Ferreira sempre exercia e impunha
a sua liderança e autoridade. Foi quando o tenente-coronel Antonio Lopes de
Oliveira Braga tomou a palavra e disse:
- Temos de pensar agora naquela área que já
tinha sido escolhida antes, área escolhida pelo deputado Meireles...
- Mas aquele projeto foi rejeitado, disse
Antony.
- Sim, mas eu conheço o local, tenho um roçado
ali, disse Braga. O lugar é bom, muito bom. É elevado, imponente. O mais
elevado da cidade. Fica no que os índios chamam de “terras altas”.
- Gosto daquela área, ali o Teatro será bem,
disse Fileto Pires.
E depois de uma breve discussão as obras
mudaram para aquele terreno, um dos mais elevados da cidade, onde está até
hoje, e em frente se planejou uma praça, a atual São Sebastião, na época um
terreno apenas limpo para erigir a coluna comemorativa da abertura dos portos
no rio Amazonas, monumento que foi inaugurado no dia 7 de setembro de 1867.
E no dia 14 de fevereiro de 1884
foi lançada a pedra fundamental do Teatro Amazonas no novo lugar. Estavam
presentes o Governador Eduardo Ribeiro, o Secretário de Estado Fileto Pires
Ferreira, e outros.
7. O GOVERNADOR FILETO PIRES
FERREIRA DEFENDE SUA HONRA
Em 1902, no Clube Alemão, Lima Silva,
Marinalva e Waldemar Scholz.
- Assim o encontrou Fileto Pires Ferreira,
concluiu Lima Silva, para Scholz.
Naquele dia, Lima Silva estava acompanhado de
Marinalva. Marinalva, durante as brigas, gritava:
“Você tem vergonha de mim!” “Você nunca sai
comigo!”
- E estas recentes acusações, que agora se
fazem, contra Fileto? perguntou Scholz.
Eles estavam passeando na alameda das
orquídeas do Clube.
- Todas falsas, respondeu o outro.
Ao chegar ao bar, sentaram-se numa das mesas,
encomendaram os “Blacks”. Lima Silva ficou temeroso. Sabia que Marinalva,
depois do terceiro uísque, perdia a compostura, chegava a ”flertar” com todos
os homens. Ela estava ainda mais interessante, apesar de mais velha. Muito
elegante, bem vestida, no rigor da moda de Paris, ao contrário das demais
caboclas daquela idade continuava em forma. Até perto dos sessenta anos ela
continuou uma mulher atraente, sexy.
- Não se ouviu o acusado, Fileto que não teve
direito de defesa. Processaram o ex-governador sem respeitar os prazos. Não se
publicou a acusação. Fileto não poderia defender-se, porque não sabia de que o
acusavam.
- Agora sabe.
- Sim. Mas não se enviou a acusação ao acusado
e a Comissão Julgadora é toda constituída pela oposição.
- Quem o denunciou?
- Um novato em Manaus. Recebeu em troca a
linha de navegação, e seu irmão ganhou o privilégio de abrir uma fábrica de
pólvora em Manaus. Foi nomeado Diretor da Secretaria do Congresso.
- Não diga? perguntou, Scholz, surpreso.
- Sim. E mais. Atribuíram ao ex-secretário de
segurança, Guido de Sousa, cunhado de Fileto, atos criminosos, violência,
tortura, estupros, mas não apresentaram o nome de nenhuma vítima. Inventaram
tudo, ou se basearam em boatos.
- Que horror!
- A outra denúncia foi de que Fileto teria
sacado milhares de libras esterlinas na Pussinelli, Prusse & Co, mas a casa
exportadora negou tudo, por documento escrito e assinado pelo próprio
Pussinelli. Apenas D. Maria Lucrecia, esposa de Fileto, tinha sacado para si dois
contos, coisa de família, não de Estado.
- Estou estarrecido.
- Sim, houve outra denúncia. Disseram que
Fileto fez contratos milionários, mas ele provou que todos os contratos eram
legais e tiveram concorrência pública. Acusaram também de ter desapropriado
terras como a parte alta da Av. Eduardo Ribeiro, que foi divida em duas e ali
construído um jardim. Fileto também provou a legalidade disso. Dezenas de obras
foram feitas por Fileto em 19 meses de governo. Assumiu em 23 de julho de 1896,
recebeu o estado endividado, num déficit de 4 mil contos. Deixou um superávit
de 9 mil contos. Recebeu o Estado com obras paradas por falta de verba e teve
de fazer um empréstimo para pagar o funcionalismo. A justiça estava amordaçada,
os orçamentos tinham verbas ilimitadas. Se fosse desonesto não teria acabado
com tudo isso. Irritou os homens do seu partido, principalmente Eduardo
Ribeiro. Fileto pediu ao Governo Federal uma devassa no seu próprio governo.
Não conseguiu. O Federal estava envolvido, temia a devassa. Fileto pediu
intervenção federal. Não conseguiu. O governo federal se apressou em abafar o
caso. Fileto escreveu um livro, onde fez um balanço de seu governo. É um livro
muito bem escrito: “A verdade sobre o caso do Amazonas”. Terminou de escrever
em 22 de julho de 1900. E depois de um
suspiro, exclamou: “Fileto Pires Ferreira foi o homem público honesto mais
caluniado de seu tempo!”
- E a carta de renúncia era falsa,
acrescentou. Foi escrita por Aristides Bayna e a assinatura foi falsificada
pelo vice-governador Ramalho Junior. Fileto assumiu em 23 de julho de 1896 e
licenciou-se em 4 de abril de 1898, para tratamento de saúde em Paris. Chegou
em Paris em 14 de junho de 1898 e já no mesmo dia recebeu, no “Grand Hotel”
onde se hospedara, telegrama de Ovídio Abrantes e Manoel Lages para que
voltasse, pois iam cassar sua licença. No dia 4 de julho foi operado pelo Dr.
Guyon, em Paris, no Hospital Necker, clínica das vias urinárias. Jean Casimir
Félix Guyon (1831-1920) é considerado o fundador da moderna urologia. Publicou
“Leçons cliniques sur les maladies des voies urinaiares” em 1881, um alentado
tratado de 998 páginas.
- Mas não disseram que ele estava passeando?
- Calúnia, disse Lima Silva. Ele tinha um
cálculo renal, que era a especialidade do dr. Guyon. Se Fileto estivesse
passeando não escreveria um livro de 180 páginas para se defender.
- Certamente.
- Fileto voltou em segredo, contra a
prescrição do seu médico, no dia 16 de julho. Já em Lisboa se sabia que ele
estava voltando de Paris. Em Paris morava João Serejo, em companhia da família
de Fileto. Em Manaus os deputados aliados não compareciam para não haver
reunião para a cassação da sua licença médica. Houve um banquete no dia 1 de
julho em homenagem a Fileto, em Paris. Mas ele já estava cassado sem saber pela
falsa carta de renúncia, que é do dia 27 de junho de 1898. Fileto despachou com
o Presidente do Brasil em Paris. Fileto não gostava de política, não pensava em
continuar na política...
- Quem seria o sucessor?
- Ele não pensava em sucessor e por isso se
desinteressou em montar partido para favorecê-lo. Esse foi seu erro. Fileto era
um romântico, acreditava nos homens. Nos amigos. Todos o traíram. Até os
Secretários de Estado. Era impossível prever que ele seria traído pelos mesmos
personagens que o homenagearam em 16 de março, na partida, com uma placa de
ouro com seus nomes. Velhos camaradas o traíram.
- Eu não sabia...
- Na Ilha da Maneira, recebeu más notícias. Em
Belém, a 4 de agosto, foi recebido pelo Governador Paes de Carvalho, que não
reconheceu o Governo ilegal de Ramalho Junior. Ali ele soube que seu cunhado,
Guido de Sousa, tinha sido demitido e estava escondido. Os familiares de Fileto
saíram às pressas de Manaus para não sofrer represálias. No mesmo dia em que
chegou partiu para reassumir seu posto de Governador do Amazonas. No meio da
viagem o advertiram que não deveria ir sem força militar para reaver seu posto,
pois estavam dispostos a prendê-lo...
- Por que tudo isso? – perguntou Scholz.
- A razão é a concessão das obras do
porto de Manaus. Além disso, Fileto fez um discurso comprometedor, em Paris,
elogiando Campos Sales, odiado pela elite amazonense.
E depois de um gole de uísque, Lima Silva
tomou fôlego e disse:
- Um dos culpados pela deposição de Fileto foi
o ex-Governador Eduardo Ribeiro, que era Presidente do Congresso desde 15 de
julho de 1898 (a falsa carta é de 27 de junho). A falsa carta de renúncia foi
apresentada e aceita pelo Congresso no dia primeiro de agosto de 98. A carta e
a assinatura foram falsificadas na presença de Eduardo Ribeiro. Nunca se deve
dizer que Fileto era um pupilo de Eduardo. Fileto Pires tinha luz própria. Era
melhor do que Eduardo Ribeiro. Teria feito um governo muito mais importante.
- Posso tomar um sorvete? – perguntou,
dengosa, a bela Marinalva.
8. O PÁSSARO VOA PARA A SERPENTE
A galope, Eduardo Ribeiro e Fileto Pires. Em
direção ao Trapiche Teixeira.
- Por quê? – pergunta Fileto.
- Porque não deixaram. Os proprietários dessas
casas.
- E agora? – quis saber Fileto.
O Governador do Amazonas Eduardo Ribeiro e o
futuro Governador, Secretário de Estado Fileto Pires Ferreira, pararam para
deixar passar um grupo de homens que puxavam carroças cheias de peixes e de
moscas.
- Agora, respondeu o Governador, agora a
Avenida, que levará o meu nome, vai ter de fazer uma curva, um cotovelo, antes
de chegar ao rio. Horrível. Perdeu toda a imponência, diminuiu de tamanho.
Seria uma reta imensa. Um bulevar.
- Sim, concordou Fileto. Se pudesse seguir em
linha reta seria uma extraordinária avenida, imponente e aberta, como está no
traçado original de Thamaturgo.
- Não me fale desse homem! - gritou, irado,
Eduardo Ribeiro. Anda ddizendo horrores a meu respeito no Senado.
- De que se trata.
- Diz que sou um ladrão, um nababo,
milionário, que tenho inúmeras casas e terrenos, que usurpei o poder...
- Mas...
- Tudo que tenho comprei com meu trabalho.
Mesmo a casa de minha mãe, no Maranhão. A casa de minha irmã foi dada por
correligionários que não quiseram dizer o nome. Eu nem sei quem pagou.
Eduardo falava gritando, a irada voz de
barítono, gesticulava.
- Estou publicando um livro no Rio de Janeiro
pela tipografia do “Jornal do Comércio”.
E voltando-se para Fileto,
gritou:
- Vai-se chamar: “Contra a
calúnia”!
Fileto manteve-se calado.
- Ele tem o apoio de vários
senadores, inclusive Rui Barbora. Os insultos caluniosos estão na Ata da Sessão
do 23 de julho de 1896, publicados nos Anais do Senado pelo senador Ladário.
Deve ter por trás o Gregório [Thaumaturgo de Azevedo]. Thamaturgo tem escrito
quase diariamente contra mim. Tem dito horrores, tem dito que estou milionário.
- Quem é Ladário?
- Ladário é o Barão do Ladário,
o Costa Azevedo. Um monarquista, entendeu? Um monarquista! Meu livro vai
explicar tudo, vai explicar tudo, vai denunciar essa gente!
Eduardo, como sempre, estava fardado. Fileto
não. Fileto vestia elegante terno de linho branco, gravata borboleta de seda
vermelha. Eduardo era baixinho, enfezado, decidido, casmurro. Não falava:
gritava ordens. Fileto era magro, ágil, elétrico, homem de fino trato, olhar
inteligente, meio romântico, ousado, impetuoso, um tanto ingênuo, elegante de
espírito. Era bem nascido, família abastada, dona do Norte do Piauí, a terra do
gado, grandes fazendas. Eduardo vinha de baixo, nasceu muito pobre, o pai
morreu louco, dificuldade para estudar, para sobreviver, para vencer, lutava
contra o preconceito de cor, e graças à sua inteligência e genialidade tinha
chegado ao posto de Capitão do Exército, professor da escola do Estado Maior do
Exército, era engenheiro, e contra tudo e contra todos galgara posição
invejável. Odiado pelas elites, amado pelo povo. Fileto era jovem e bem casado.
Eduardo era solteiro, reservado. Ninguém penetrava na sua vida pessoal. Diziam
que tinha mulher e filho, mas nunca ficou provado, nunca apareceram os dois,
nunca se soube desta mulher e muito menos deste seu filho.
Fileto em silêncio pensava: “Mas ele está
mesmo rico...”
- Fileto, disse Eduardo Ribeiro. Todos nós
seremos traídos! Todos seremos acusados de corrupção, e por nossos mais
próximos amigos! Espere para ver...
- Como assim? – perguntou Fileto.
- Prepare-se. Os nossos adversários vão jogar
pesado. Os amigos vão trair. Na política é assim.
- Não sou político. Sou militar.
- Engana-se! Posso pedir-lhe um favor?
- O quê?
- Vou indicar você para ser o meu sucessor.
Vou indicar ao Partido.
- Não faça isso! Por favor, não faça! – disse
Fileto, prevendo aborrecimentos.
- Eu só tenho a você. Só confio em você, disse
Eduardo.
Fileto ficou sério. Continuaram em silêncio.
Fileto sabia o que o outro queria. Sabia que Eduardo ia querer controlá-lo,
manipulá-lo se fosse eleito. Mas resolveu esquecer. Sabia que o Partido não o
apoiava.
* * *
Lima Silva, Alarico José Furtado, Emílio
Moreira, Joaquim Sarmento e João Coelho antes do jantar no restaurante do Hotel
Cassina. Era uma noite fresca. Bebiam um pouco de champanhe antes do peixe. Não
tinham pressa.
Furtado disse:
- Estive ontem a bordo do “Maranhense”. Tenho
notícias, disse.
O “Maranhense”, apesar do nome, era um vapor
inglês.
- Eu soube – disse o ex-governador Furtado,
com a taça na mão. Parece que já está encomendado todo o ferro necessário para
a construção do teatro.
- Deve chegar em setembro, acrescentou
Furtado, envolto numa baforada de charuto. O Carlos Rossi, chefe a forma Rossi
& Irmãos, está viajando com o pessoal dele em Glasgow, contratando.
- Devem chegar operários especializados, disse
Emílio Moreira.
Emílio Moreira era baiano, irmão do Barão do
Juruá e de Guilherme Moreira. Os irmãos Emílio e Guilherme Moreira fundaram em
Manaus a firma Moreira & Irmão. Eram dois irmãos muito unidos e muito
ricos. Enquanto um viajava pelo interior, principalmente pelo Juruá, o outro
ficava na capital. Negociavam borracha, castanha, pirarucu seco e outros
produtos, que exportavam. Fizeram fortuna. Entraram na política.
Emílio Moreira casou-se com a irmã de Joaquim
Sarmento, futuro senador, de uma família importante, o que aumentou o prestígio
dos dois. Emílio Moreira foi decisivo na eleição de Eduardo Ribeiro ao Governo.
Mas as obras da construção do Teatro estavam paradas. A Assembléia Legislativa
autorizou a modificação do contrato, depois de duro embate político com o Presidente
da Província. O contrato foi rescindido, o material da construção do teatro
ficou sob a guarda da Secretaria de Obras Públicas. Os contratantes foram
indenizados. Tudo parou.
- Parece que o teatro nasceu sob um signo
funesto, disse Lima Silva.
- Desde o início da sua existência, quer como
idéia, quer como realidade. Quando não era a oposição, eram os contratantes,
forçando o tesouro público a despesas desnecessárias, - concluiu.
* * *
Em 24 de fevereiro de 1887, passando Emilio
Moreira pela Praça São Sebastião, vê que se está construindo um barracão de
madeira para ali serem guardados os materiais da construção do teatro.
Eram ordens do governo imperial.
A praça São Sebastião tinha estado em obras.
Caríssimas. Tentaram aterravam o Igarapé do Espírito Santo, que passava onde
hoje é a rua 24 de maio. Os terrenos ao redor do teatro tinham de ser
nivelados. A terraplanagem da área tinha custado uma fortuna, quase 7 contos.
Foram usados carros de condução e carroças de água. Essas obras se arrastaram
no período de 1886 a 1892. Depois pararam.
As obras da construção do teatro
pararam completamente.
E o magnífico Teatro Amazonas se
transformou num esqueleto cheio de mato, abandonado. As paredes já construídas
estavam cobertas de limo. O lugar se transformou num lugar perigoso, escuro,
cheio de lixo, fedia a urina e a fezes humanas.
9. CRISPIM DO AMARAL
- Como vê, meu caro, além da pintura, um
maquinismo complicadíssimo e um guarda-roupa. As “Amazonas” estarão vestidas de
guerreiras da idade do ferro: couraça, capacete, lança, escudo, peles de
tigres, sandálias altas e trançadas.
- É o seu “Panorama Teatral”? perguntou Levy.
- Sim, elas montarão em cavalos, quase do
tamanho natural. Essas Amazonas atravessarão o espaço a uma altura de cinco a
seis metros. Para isso é necessário um maquinismo todo especial, que só a ópera
de Paris possui para a chevauchée das Walkyrias de Wagner.
Crisprim falava alto, como se tivesse no
palco, dramático, gesticulava, abria os braços e pigarreava enquanto falava.
- Entre os acessórios, contam-se 4 lanternas
de projeção, de grande força, para o efeito de toda a cena das Amazonas. O
espectador verá passar, pelo rio, troncos de árvores, plantas aquáticas
diversas, como realmente no rio Amazonas. Jacarés e tartarugas na transparência
da água, um efeito devastador.
E suspirando:
- Para esta obra, com o
transporte e montagem, preciso de trinta mil francos.
Então, todos foram levados para a sala de
jantar pelo generoso anfitrião João Serejo.
- O que significa a pintura, perguntou
Waldemar Scholz, entrando na sala onde estava o novo quadro de Crispim.
Ele, Lima Silva, Adelelmo do Nascimento, o
pianista Albert Levy e João Kardek jantavam na chácara de João d’Albuquerque
Serejo e D. Clementina Dias, na rua da Constituição, atual 24 de Maio. Fileto
Pires Ferreira, Secretário de Estado, também comparecera, mas já tinha saído,
ocupadíssimo e agitado como era. Há pouco chegara o Visconde de Vila Gião com a
esposa, D. Maria José, coberta de jóias, que era professora no Carreiro.
Crispim do Amaral era o convidado principal. Já tinha vendido o quadro e agora
tentava arrancar os 30.000 francos, principalmente do riquíssimo alemão Scholz
e do Visconde.
O jantar estava servido, mas eles contemplavam
o grande quadro de Crispim do Amaral. O quadro dominava a sala. Crispim com sua obra se agigantava, apontava
detalhes, a contra-luz, os tons de verde, salientava a composição, a perfeição,
a amplitude da paisagem amazônica.
Mulato, o genial Crispim do Amaral (Pernambuco, 1845 - Rio de Janeiro
1911), era músico (flautista), cenógrafo, pintor, desenhista, decorador e ator.
Estudou na Academia di San Lucca, na Itália, trabalhou em Paris, no teatro da
Comédie Française. Quando cartunista do jornal «Le Rire» fez uma caricatura que
mostrava a rainha Vitória em posição vexatória e por isso foi condenado a 3
anos de prisão. Depois retornou ao Brasil e em 1894 chegou a Manaus, onde se
encarregou da decoração do Teatro Amazonas. Dizem as idéias da fachada do Teatro
Amazonas são suas, como os óculos da cimalha, alusivos aos que existem na Ópera
de Paris, e mesmo a exótica cúpula colorida.
De Manaus Crispim contratou Giovanni Capranesi e Domenico De Angelis
para trabalhar com ele.
Scholz tinha vindo ao sarau de João
d’Albuquerque para conhecer Crispim do Amaral e também para contratar Adelelmo
e Albert Levy para tocar para ele uma sonata de Beethoven, para violino e
piano, em sua casa. Trazia debaixo do braço as partituras, que importara da
Alemanha para os dois músicos.
- O que significa a pintura? - perguntou
Waldemar Scholz.
- A Baía de Boioçu, respondeu Crispim,
apontando da janela a região do quadro, algumas horas acima da cidade de
Manaus. Dali se via a Baía, se não fosse noite. Crispim sacudia a cabeça, pigarreando,
inquieto, como se representasse Shakespeare.
- A Boioçu, vociferou, com voz grave, possui
uma largara de vinte e oito quilômetros e, somente a Baía do Jufari, acima da
Boca do Rio Branco, a supera em largura, por ocasião das enchentes do Rio
Negro, tributário do grande Amazonas.
- Cemitério de navios naufragados,
acrescentou, trágico.
- Sim, disse, depois de um gole de champanhe.
E num gesto largo: A Boioçu tem uma centenas de ilhas onde toda a esquadra
inglesa poderia esconder-se.
O jantar estava esquecido na mesa.
- Entre a Baía do Boioçu, ou Boiuna (Cobra
Grande) e a Baía do Jufari, - continuou, no meio da sala, para a sua platéia
deliciada - encontram-se os índios Jauaperis, Camanaus, Alalaus, Macucuaus e outros, todos derivados da grande
família de índios Maacaus ou Macuxis.
- A região é repositório das mais belas lendas
amazônicas, disse apontando a tela que tinha pintado.
E depois de outro gole de champanhe, com
sublimidade e tragédia na voz: “Dizem
que Ajuricaba, o herói do Rio Iiaá, amaldiçoou o Rio Negro por ocasião de sua
morte, e é por isso que não há, ao longo desse grande Rio, acima de Manaus,
nenhuma prosperidade, nenhuma fartura, nenhuma riqueza estável. Há pouca vida
nas suas águas, comparadas com as águas barrentas dos outros rios, e menos vida
ainda nas matas, onde o silêncio é sepulcral, especialmente quando pára o
vento”.
- Quem é o personagem? perguntou Lima Silva,
apontando para o quadro.
- Arimoque, o sonhador, respondeu o pintor num
lance, e deve constar, em tamanho gigantesco, no formidável Teatro Amazonas
aqui ao lado. Arimoque, de olhos enamorados das coisas sobrenaturais, belo
caboclo que tocava flauta tríplice na beira do rio, ao pôr do sol. Faz parte
das lendas.
- Tem certeza? perguntou Adelelmo.
- Dizem que era originário do Rio Camanaú,
índio Maacu, e trabalhou com um patrão branco, trocando a fibra de piaçava.
Tirava melopéias intermináveis, cuja monotonia tinha efeito hipnótico sobre
todos os ouvintes.
E depois de servir-se de um pedaço de peixe
que o garçom distribuía, disse Crispim:
- Arimoque viajava entre as ilhas, hoje
conhecidas como arquipélago das Anavilhanas, dormindo nas pedras, com sua canoa
virada sobre si.
E esperou, em silêncio...
- Continue, insistiu Adelelmo, impressionado.
Tinha família, amante, filhos?
- Não. Sua família era a maloca, deixada além
da terceira cachoeira do rio Camanau.
- Amigos?
- Não. Vivia só.
E depois de olhar misteriosamente o quadro,
recomeçou:
- Um dia, entre a grande ilha do Tamandaré e a
costa, estava numa gruta que ficava parte do ano submersa. Era seu ponto
favorito na sua ilha.
- Naquele dia percebeu, ao longe, dois barcos
à deriva. Pegou do remo e rumou para lá... Mas quando chegou viu, com horror,
que os barcos eram duas cobras grandes.
- Duas anacondas, senhores, fez Crispim com o
horror nos olhos, de vinte metros.
E mudando de tom: “Mas estavam no cio, não se
interessaram por ele”.
- Então, escureceu, caiu tempestade, ele
voltou, abrigou-se entre as pedras, dormiu sonhou. Foi desperto por uma voz de
mulher que cantava. Era a Iara, e sua corte de deusas, a Uiara, a rainha das
águas, que aparecia para os índios de coração puro. Ela saiu das águas, os
olhos de gato, os longos cabelos verdes. A criatura o chamou, mas ele não foi e
ela desapareceu nas profundezas misteriosas do Rio Negro.
Crisprim sorveu um gole e disse:
- Arimoque passou a ofertar
flores, orquídeas, para ela voltar, mas ela não voltou. Ele apaixonou-se e
morreu de paixão. Sua canoa ainda é vista hoje, nas noites de lua cheia, vazia,
rondando aqueles espaços.
No fim da noite, quando Waldemar Scholz ia
partir, disse para Crispim, que ficou ainda, falando alto, gesticulando muito:
- Passe amanhã no meu escritório. Sabe onde
fica?
- Sei, disse Crispim.
- Nos Remédios, acrescentou Schols.
E partiu.
10. EM PARIS
Sobranceiro, alto, forte, ereto
e espadaúdo, muito elegante no seu porte fidalgo, esmerado no trajar um
impecável sobretudo – o Governador Silvério Nery e o general e ex-governador do
Piauí e Amazonas Thaumaturgo de Azevedo caminhavam lentos pela orla da Place de
La Concorde, paravam, contemplavam o Obelisco de Luxor e fumavam.
Pouco depois, sentaram-se num
café, na rue Royale.
- No Purus, desde Terra Vermelha
e Jaburu até Canacury, e no rio Acre, em Boa Esperança e Antimary, todas as
atas da eleição de Eduardo Ribeiro para o senado são falsas, disse o general.
Silvério acrescentou:
- Imagino. Conheço bem a região.
- Mesmo na Capital, mesmo em Manaus, a maioria
das atas das seções estão fraudadas, afirmou o general.
- Mas Eduardo controla a cidade, disse
Silvério Nery.
- Conosco estão Joaquim Serejo,
Amorim Figueira e Carlos Marcelino, disse o Thaumaturgo de Azevedo.
E depois de um gole de café:
- Meu amigo, a eleição que supostamente elegeu
Eduardo Ribeiro ao Senado em dezembro de 1896 tem de ser anulada, concluiu
Thaumaturgo. Pelo bem da República. Os eleitores foram fabricados, ali mesmos
nas mesas eleitorais.
- Eu sei.
- Nas sete secções da Capital só
existiam agentes de Eduardo.
- Eu não votei, disse o Governador, estava no
Rio de Janeiro, mas soube que as mesas apuradoras funcionavam em salas
divididas por tapumes para impedir a fiscalização.
- Impediram os fiscais da oposição de entrar
nos recintos da votação!
- Ele fez e desfez! Ribeiro acha que é rei,
disse Silvério. Sempre foi assim. O poder o enlouqueceu completamente.
- Mas ele já era louco antes.
- Sim. Psicótico, como seu pai.
- O problema dele foi subir tanto na vida.
Mulato, menino pobre, viu-se depois com todo aquele poder nas mãos... perdeu o
controle, perdeu a noção de realidade.
- Sim, ele acha que pode tudo. A culpa disso
tudo cabe ao Floriano Peixoto.
- Sim, sim, disse o General, todos aqueles
tenentinhos ligados a Floriano e ao Benjamim Constant subiram ao poder num
golpe de mágica...
- A mágica da revolução...
- A mágica do golpe militar que foi a chamada
“proclamação” da República.
- Mas o Rei era um fraco. E doente.
- Deixou o poder a cargo da princesa Isabel...
- Você viu o novo Teatro? O “Teatro Amazonas”?
- Não.
- O louco modificou a planta original,
clássica, junto com um vigarista chamado Crispim do Amaral, e colocou uma
fantasia idiota, uma colossal cúpula de escamas de vidro colorido no teto, que
se ilumina. O teatro virou um circo, amigo, um circo! Misto de mesquita árabe
com tenda indígena...
Riram-se.
- Há um movimento para demolir aquela
excrescência.
- A eleição foi uma comédia: votaram eleitores
não listados, alguns defuntos, e várias vezes.
Começou a chover. Entraram no café. Resolveram
jantar ali mesmo. Thaumaturgo tinha dois domicílios: um no Rio de Janeiro,
outro em Paris.
- Nossos aliados votaram, mas seus votos não
apareceram na contagem, disse ele, sentando-se.
Encomendaram champanha Veuve Clicquot.
- Havia um aparato policial para intimidar a
oposição.
- Foi negado o voto aberto, que é legal. As
mesas negaram-se a datar e rubricar as cédulas.
- Fizemos petições inúteis.
- Ribeiro humilha a elite de Manaus. É um
ditador. A justiça estadual está amordaça. O juiz federal se disse “suspeito”
para receber nossa petição. A junta apuradora não recebeu nosso protesto, nem o
inseriu na ata, e no dia seguinte os jornais elogiaram a lisura das eleições.
Disseram que não houve contestação nem protesto.
- Mas o mais grave é que se fez a apuração em
menos de três horas!
- Em três horas?
- Sim. Em três horas e meia já se tinham
acabado os trabalhos.
Riram-se.
- Aquela reunião da junta apuradora foi mera
formalidade. Em Lábrea, São Paulo de Olivença, Moura, Barcellos, Humaitá e
Fonte Boa nem houve eleição.
- Por quê?
- A comunicação oficial não chegou a tempo de
se fazerem as mudanças pelas disposições da nova lei eleitoral, que eles
desconheciam.
- Sim.
- No Diário Oficial de Manaus, documento
quatro, de 24 de dezembro de 1896, foi publicada a lei que deveria começar a
valer 3 dias depois!
- Brincadeira!
(risos).
- Sim! Na forma do Decreto nº 572 de 12 de
julho de 1890 tem de entrar em vigor em três dias.
- Em 3 a 8 dias é impossível fazer chegar a
esses municípios o texto da nova lei eleitoral, situados a centenas de milhas
da Capital, nos rios Negros, Solimões, Madeira e Purus. Como você sabe, os
vapores não fazem mais que 7 a 8 milhas por hora, e vão parando em cada porto
do caminho.
- Mas o resultado foi proclamado!
- Sim, resultado foi proclamado!
- Em Canutana e em Barreirinha não houve
eleição, segundo disseram nossos correligionários. Lá não se pôde obter
documento algum.
- Só em duas secções do subúrbio de Manaus
conseguimos fazer valer nossos direitos: em Manacapuru e em Puraquequara.
- Perto de minha fazenda, disse Nery.
- Só 12 seções! Em todo o Estado!
- Eduardo Ribeiro preparou a eleição para si,
para se eleger Senador da República. Para ele era questão de vida ou morte.
Para ele era impossível perder.
- Você sabe que ele está em Paris?
- Não me diga!
* * *
Campo de Marte, Paris.
De repente, porque faz sol, Lima
Silva não está querendo mais voltar para Manaus. Sentava no mesmo banco da
mesma praça, a imensa praça de sempre.
Há anos ele tinha vindo àquela
mesma praça, ao Campo de Marte, em frente à Torre. Nas suas costas estava a
Escola Militar, onde Napoleão estudou. O frio tinha diminuído. Ele estava em
comunhão, contemplação. Gostaria de ficar. Mas dentro de 6 horas tinha de
voltar para Manaus. No mesmo banco da mesma praça. O mesmo jeito de contemplar.
Vida estranha, mundo estranho. Fazia sol.
- Dei a Manaus todo o conforto, disse Eduardo
Ribeiro a seu lado, todo o desenvolvimento material e moral. Todas as
comodidades, confortos de uma cidade moderna e civilizada.
- Qual vai ser sua maior obra? – perguntou
Lima Silva.
- Seria o Palácio... – disse. O meu Palácio! –
suspirou, com um brilho de loucura no olhar. O Palácio do Governo, que eles
querem demolir... Meu amigo, meus inimigos vão demolir o meu Palácio, o Palácio
dos meus sonhos...
Lima Silva percebeu que ele tinha lágrimas nos
olhos. As mãos trêmulas. Eduardo Ribeiro estava pálido.
- Mas Governador... – disse Lima Silva – o
Senhor muito fez: os diversos calçamentos, a iluminação pública, a arborização,
o ajardinamento da cidade, ruas e praças, as pontes, os aterros...
Eduardo Ribeiro não mais o ouvia. Olhava para
um ponto muito distante, como se olhasse para o vulto da morte.
11. COELHO NETO
-Bolo de cupuaçu, Mestre? - perguntou Lima
Silva, servindo o moço.
- Sim, sim. A vida é a variedade... Assim como
o paladar pede sabores diversos, assim a alma exige novas impressões, disse
Coelho Neto.
-É uma iguaria amazonense, disse Karl Waldemar
Scholz. Mas só na minha casa existe esta receita.
-Por quê? – quis saber o escritor num gesto de
curiosidade.
-Minha cozinheira aplicou a receita da torta
de maça alemã.
-Apfelstrudel? – perguntou Coelho Neto, em
perfeita pronúncia alemã.
-Sim, respondeu Scholz. Contém pedaços de
castanha do Pará e calda de cupuaçu.
-Uma delícia, disse o escritor, provando e
balançando a cabeça.
Era dia 10 de setembro de 1899.
Coelho Neto deixaria Manaus no
dia seguinte, no paquete “Manaus”.
Antes de partir, pose para o
fotógrafo Lucciani.
Coelho Neto, maranhense, filho
de um português e de uma índia, desembarcou na noite de 11 de agosto. Estava na
cidade há 26 dias, no Hotel Cassina. Ele já era famoso aos 35 anos.
Alto, magro, discretamente
elegante.
Tinha publicado, naquela época,
sete romances, sete livros de contos, quatro volumes de crônicas, três novelas,
dois volumes de “educação moral e cívica”, dois poemas dramáticos, uma balada e
uma conferência.
Era redator da “Gazeta do Rio”,
de Patrocínio; e do “Diário de Notícias”, de Rui Barbosa.
Dava aula de história da arte na
Escola Nacional de Belas Artes.
Coelho Neto pertencia ao grupo
de Bilac, Murat, Aluísio de Azevedo, Raimundo Correia, Paula Ney, Guimarães
Passos, Raul Pompéia, Martins Fontes.
Já na primeira noite em Manaus
esteve reunido com a intelectualidade amazonense.
Jantou com Raul de Azevedo, Fran
Paxeco e Cláudio de Sousa, que era médico em Manaus.
Cláudio de Sousa, depois, entrou
para a Academia Brasileira de Letras.
No dia seguinte, no Teatro
Amazonas, foi assistir, junto com o Governador Ramalho, à opereta portuguesa:
“Os 28 dias de Clarinha”.
No outro dia, almoçou com
amigos, a bordo, visitou Eduardo Ribeiro na sua chácara, almoçou na casa do
diretor do “Amazonas Comercial”, no
Palácio do Governo, na chácara de Inácio Pessoa, na casa de Th. Vaz.
Visitou o Centro Artístico, o
Congresso, o Ginásio, a Escola Normal, o Instituto Benjamin Constant, o quartel
de polícia, o hospital da Beneficência Portuguesa.
Participou de um piquenique no
Tarumã, de um baile de gala no “Sport Club”... Coelho Neto parecia chefe de
estado.
No Teatro Amazonas durante a
operetta “Dia e noite”, foi glorificado
com duas bandas de música e por discurso de Claudio de Sousa. Houve hino
nacional e discurso do próprio escritor.
-Volto amanhã para o Rio, disse
Coelho Neto.
E acrescentou:
-Estou cansado e saudoso. Deixei
no Rio um filho recém-nascido e a viagem foi longa.
- Muito longa? - indagou, vivamente,
Lima Silva.
- Parei no Espírito Santo, na
Bahia, em Sergipe, em Pernambuco, na Paraíba, em Fortaleza, no Maranhão, no
Pará.
Depois de alguns minutos de
conversação, Lima Silva disparou:
- Tem visto Thaumaturgo de
Azevedo?
Houve momento de constrangimento.
Coelho Neto corou.
O arguto Lima Silva queria saber
o que estava por trás daquela viagem, pois o escritor não devia ter vindo a
Manaus somente para almoçar e ser homenageado.
Sabia que Coelho Neto era ligado
aos militares republicanos, como secretário-geral da Liga de Defesa Nacional.
Coelho casou-se com Maria Gabriela Brandão, logo após a Proclamação da
República, tendo como padrinho o próprio Presidente Deodoro da Fonseca. O casal
teve treze filhos, dos quais só sete sobreviveram. Devia conhecer de perto o
ex-governador Thaumaturgo, que era amigo de Deodoro.
- Sim, tenho visto, disse ele,
meio sem jeito.
- E Fileto Pires Ferreira? –
perguntou Lima Silva.
- Este está recluso na sua casa
no Andaraí. Mora no meio de um pântano...
- No meio da floresta?
- Sim, não visita ninguém, nem
recebe, mas luta por seus direitos. Está preparando um livro que vai chamar-se
“A verdade sobre o caso do Amazonas”.
- E depois de um gole,
acrescentou:
- Por aqui ninguém fala dele, só
de Eduardo Ribeiro.
- Sim, é verdade.
- É a glorificação do Eduardo
Ribeiro. O governo de Fileto parece que nem existiu, que foi uma nulidade.
- Mas não foi, redargüiu Lima
Silva. Foi melhor do que o de Eduardo.
- Como assim? – indagou o
escritor.
- Fileto governou 19 meses.
Eduardo quase 8 anos. No Governo de Eduardo Ribeiro, houve a construção... (e
Lima Silva foi descrecendo as realizações de Euduardo Ribeiro).
- Tudo isso? Perguntou o
escritor maranhense?
- Sim. Mas nos 19 meses do
Governo de Fileto Pires houve a inauguração do Serviço de Eletricidade,
escavações, nivelamentos e calçamentos das ruas 7 de Dezembro, Demetrio
Ribeiro, Quintino Bocaiúva, Marechal Deodoro, Independência, Barroso, Saldanha
Marinho, Marcilio Dias, 10 de Julho, Jose Clemente, Monsenhor Coutinho
(Progresso), Emilio Moreira, Ramos Ferreira, Ipixuna, Oriental e Marques de
Santa Cruz... 215.000 m3 de aterros e
desaterros. Fileto fez o aterro do Igarapé dos Remédios, com 80.000 m3 de terra
retirada da praia do Rio Branco, onde hoje está Escola Técnica Federal, no
trecho entre Mundurucus e ponte dos Remédios. Fez a continuação das obras do
Palácio da Justiça e do Palácio do Governo (nunca concluído). O Palácio do
Governo, obra monumental, jamais concluída, seria o maior prédio já construído
no Brasil de sua época. Fileto terminou a rampa da Praça 15 de Novembro e dos
jardins da Matriz. Fechou o contrato do melhoramento do porto e para o
estabelecimento da viação urbana e suburbana. Manaus nos fins de 1897 já
possuía 16 quilômetros de linhas, 25 bondes para carga e 10 para passageiros,
tendo transportado 171.783 usuários, a 250 reis a passagem. Fileto fez a
iluminação dos bairros do Mocó, Cachoeira Grande e Cachoeirinha. Instalou 300
lampiões a nafta, fez a construção da rede complementar de água, instalou o
serviço telefônico de 330 aparelhos, cujo início de funcionamento se deu em
1897. Fileto concluiu as obras do Teatro Amazonas, que estavam paradas e o
inaugurou em 31 de dezembro de 1896.
- Tudo isso em 19 meses?
- Sim. E não deixou dívidas, mas um monstruoso
saldo. Ele começou seu governo pagando as dívidas, pois Eduardo Ribeiro tinha
deixado o Governo quebrado. Fileto pagou todas as dívidas do governo anterior e
alavancou as obras.
- O Sr. tem razão, doutor.
No fim daquela tarde Lima Silva desconfiou que
Coelho Neto tinha vindo ao Amazonas como observador político da capital para
preparar o desfecho que ia ser cassar a pretensão de Eduardo Ribeiro de assumir
o Senado.
12. O BRAÇO ERGUIDO DE APOLO
- Pare o carro, disse Scholz para o cocheiro
da sua vitória.
Os dois saíram do carro e começaram a caminhar
debaixo daquelas sombras das árvores do largo de São Sebastião.
- Sim, disse Lima Silva, a estátua de Apolo
ficaria em cima do arco do frontão.
- Que significam aquelas duas figuras no
centro do arco? – perguntou Scholz, apontando para cima com a ponta do
guarda-chuva.
- As belas artes e as artes liberais,
respondeu o outro. O escudo no centro marca a data da inauguração.
- E por que não colocaram a estátua de Apolo?
– perguntou Scholz, olhando para Lima Silva.
- Não sei. Dizem que não foi colocado sobre o
frontão por excesso de peso, respondeu Silva. Mas tenho outra interpretação.
- Como assim? Que interpretação?
- Apolo era um colosso de quase cinco metros...
Na mão esquerda uma lira. A mão direita, levantada e estendida para trás, à
altura da cabeça, recompensava as artes.
Lima Silva imitou a estátua, e
continuou:
- Sentadas no chão, a seu lado,
estavam duas figuras: a História e a Fama. Alem disso, duas gigantescas liras
ornamentais deveriam estar em cada canto superior da fachada frontal do
teatro...
- E também lá não foram
postas...
- Também lá não foram postas.
- E por que o busto do Eduardo Ribeiro está
ali? – perguntou de repente Scholz.
- Vaidade, tudo é vaidade. Vaidade do
ex-governador, disse Silva. Ele está ao lado de Joaquim Manuel de Macedo, do
compositor Enrique Mesquita, do ator João Caetano, do compositor Carlos Gomes,
do ator Francisco Correia Vasques, do maestro Enrique Gurjão.
E depois de uma pausa:
- Substituiu José de Alencar.
- De quem é o projeto da fachada?
- Crispim do Amaral, disse Silva.
- O homem dos sete instrumentos.
- Sim.
- E onde estão o grupo de Apolo e as duas
grandes liras? Onde as puseram? – quis saber Scholz.
- No lixo! – respondeu Lima Silva.
O milionário abriu bem os olhos e olhou para o
amigo.
- No lixo? – perguntou.
- Sim. Estão abandonadas, há vários anos, no
pátio da Usina de Bondes da Cachoeirinha... Nem sei se ainda lá existem.
- Por que abandonadas?
- Amigo, veja: Apolo se tornou
deus da música porque venceu Pan em torneio. A partir daí o deus vivia cercado
das nove musas. Tocava lira. Aquela estátua foi causa de muita polêmica, desde
que desembarcou em Manaus...
- Por quê?
- Primeiro, porque o deus está
nu. Ou semi-nu, o que ofende à moral da terra. Acharam que não ficaria bem
colocar um homem nu no alto do arco, como símbolo não sabem de quê.
Riram-se.
- Depois, prosseguiu Lima Silva,
há um fato mais sutil, delicado.
- Qual?
- A sociedade brasileira é
extremamente machista. Se ali estivesse uma deusa nua, tudo bem. Mas em Manaus
isto se agrava.
- Compreendo. Na Alemanha também
é assim, disse o alemão.
- Além disso, Eduardo Ribeiro é
solteiro e há boatos ferinos acerca de sua masculinidade... Nunca se soube que
ele tivesse mulher. Fala-se de um filho, mas nunca ninguém viu esse filho até
hoje. Ninguém questiona a masculinidade dele na sua frente, porque o baixinho é
agressivo, mal humorado e truculento. Se aquela estátua estivesse no cimo do
teatro logo alimentaria ilações caluniosas e ironias a respeito de Eduardo
Ribeiro...
Riram-se.
- Mas há um fato mais
grave.
- Ainda? - perguntou Scholz,
interessado.
- Amigo, aquela estátua, aquele
Apolo é muito feminino.
- Como feminino?
- Veja: Apolo segura a lira com
o braço esquerdo da mesma forma que uma colegial carrega seus cadernos,
abraçada contra a cintura.
- Sim.
- O outro braço, o direito, está
horizontalmente estendido para trás, com a palma para baixo, num gesto de
desprezo, de dádiva, de doação, de aborrecimento.
- Pois não.
- O braço que está levemente
erguido à altura da cabeça tem a palma e o pulso caindo, como quem acaba de
lançar um punhado de sementes na terra – afinal a estátua representa Apolo
recompensando as musas, mas com desdém, com desprezo, com ar blasé, com
afetação, ele ali não dá importâncias às suas musas, ele as rejeita, ele não as
leva em conta, ele as recompensa como quem diz “peguem essas migalhas que é
tudo o que merecem”.
- Continue, disse Scholz, já
divertido.
- O punho para baixo e o
movimento contorcido e dançante das pernas e o corpo feminino sem grande
musculatura do deus que se retorce para algo que está atrás dele, embora ele
esteja olhando para a frente, para o alto, e os cabelos compridos e a face
feminina não fazem dele um homem, mas sim uma mulher, um eunuco efeminado.
- Sim.
- Por isso aquele Apolo teatral,
saído de um cabaré de hetairas, desenhado por Crispim do Amaral para ser a
culminância do nosso teatro, foi logo recusado, e rejeitado mesmo ate para ser
colocado em praça pública aos olhos do povo...
- Seria apedrejado!
- Aquele Apolo é um grande
travesti!
- Seria motivo da chacota do
povo!
- Ah, ah, ah.
- Como as pinturas masculinas do
interior do teatro, não acha?
- Sim. Mas ali dentro aqueles
efebos femininos estão entre mulheres que dançam, disfarçados entre virgens de
corpos ágeis que se atropelam pressurosas aos pórticos do espetáculo.
Depois de alguns segundos,
perguntou Scholz:
- E as grandes liras?Não há razão
subjetiva para ser contra as grandes liras?
- Abandonadas. Sim, mas aqui não
há explicação. Puro descaso. Eu as vi, Scholz, são belíssimas. Imensas, cerca
de 3 ou 4 metros de altura. Como impressionantemente belo era o conjunto de
Apolo entre duas deusas. Coisa de museu.
(Anos depois, é o que dizem, o governador
Álvaro Maia mandou destruir tudo).
- Arte e dinheiro jogados fora!
- Sim, amigo, dinheiro público, disse Lima
Silva. O grupo de Apolo e as liras de bronze custaram milhares de francos franceses...
cerca de 46 mil liras...
E continuou:
- Eram pesadíssimos e maciços, e
foram fundidos em Paris, por Koch Frères, que é uma famosa fundição.
- Eu sei. Tenho trabalhos deles no meu jardim.
- Mas colocado no mais alto da
cidade, Apolo condenaria todos os habitante à chacota e ofenderia a
masculinidade universal!
(Risos).
13. ELEAZAR DE CARVALHO EM
MANAUS
- Mas uma concha acústica é
indispensável para a realização de concertos nas salas de espetáculos, disse
José Brandão, já suado e nervoso.
- Sim, mas nós não temos...
- Como não? Gritou o outro. Por
que não?
- Nós tínhamos uma caixa
acústica... chamada de “caixa timpânica”... mas foi retirada nas reformas do
governo Efigênio Sales.
- O que é uma caixa timpânica,
perguntou o deputado Lourival Gadelha que estava perto.
- É um equipamento cênico que
tem a dimensão total da área de cena e que se monta e desmonta no palco sempre
que necessário.
- Sim.
- São paredes laterais, parede
de fundo e teto, feitas de material refletor acústico. Envolvem a orquestra,
disse Brandão.
- Sim, concordou, o deputado.
Essas paredes oblíquas entre si,
em ângulos criteriosamente definidos, de forma a garantir os níveis de reflexão
e reverberação adequados, dando melhor audição para o público e músicos. O som
tem que ser jogado para fora do palco uniformemente, permitindo o equilíbrio
das diversas sonoridades de acordo com a formação da orquestra.
- E quando não estão sendo
utilizadas?
- Elas saem. São móveis.
- Explique melhor, repetiu o deputado.
- Os diversos instrumentos
emitem diferentes sons em todas as direções, disse Brandão, e uma considerável
parte desses sons se perde no volume da caixa de palco, ao invés de preencher
acusticamente a sala de espetáculo. A concha acústica conduz a sonoridade para
o público, garantindo uma boa audiência em todas as partes da sala de
espetáculo.
- Entendi, disse o deputado.
- Outra questão da maior importância é que os
músicos têm de ouvir muito bem uns aos outros, para conseguirem tocar em harmonia.
E o solista, para o bom desempenho do solista, é fundamental garantir o que
chamamos de conforto acústico.
- Sim. Sim. E agora? Que faremos?
- Uma caixa de palco como a do
Teatro Amazonas sem uma concha acústica montada se revela como o pior espaço
possível para um concerto. Os sons se misturam, viram barulho.
Foi chegando o Maestro Eleazar
de Carvalho e todos se calaram de repente.
A Orquestra Sinfônica de São
Paulo, naquele ano de 1981, se apresentaria no Teatro Amazonas, com seus 87
músicos.
- Como está a acústica, Maestro,
perguntou, timidamente e temeroso, João Brandão.
- Péssima, respondeu Eleazar.
Péssima. A acústica não é boa para a orquestra, esta muito seca.
- Para compensar essa
deficiência são necessários muitos instrumentos, explicou. E depois de olhar em
volta:
- O espaço é insuficiente para
reverberar, para rebater o som.
- Como assim? Perguntou o
deputado.
- Por exemplo: cada som tem de
percorrer 152 metros e voltar. Aqui ele
vai (ele fez um gesto), e quando
volta o outro ainda está saindo.
Foi interrompido por João
Brandão, o engenheiro do som:
- Maestro, verificamos que há um porão vazio
nas mesmas dimensões do palco, aqui abaixo de nós... E que lá em cima tem uma
caixa d’água.
- Ótimo, respondeu Eleazar de Carvalho. Serão
usados como “caixas de ressonância”.
Foram ver a “caixa d’água”: era a tal
“caixa-timpânica” que por um mecanismo de correntes descia até atrás da caixa
do palco, fechando-a.
Era a primeira vez que Eleazar se apresentava
em Manaus. Sua apresentação foi um sucesso.
14. O ADVOGADO
Cerca de 85 anos antes, em
Manaus, Lima Silva tinha sido chamado pelo ex-governador Ribeiro à sua chácara.
Ele agora era advogado e tinha uma banca rica e famosa. Teve de levar
Marinalva, que fez um escândalo para ir junto. Quando ele disse que estava indo
à chácara de Eduardo Ribeiro ela não teve dúvida:
- Ou me leva ou te mato!
Brandia um garfo.
- Mas, meu amor, vou a serviço...
Não teve jeito. Eduardo Ribeiro era o grande
ídolo político dela. “O maior homem da história”, dizia ela. Não ia perder
nunca aquela oportunidade de conhecer o Pensador.
- De que o acusam, Governador? –
perguntou Lima e Silva, olhando profissionalmente o outro.
- De tudo, doutor, de tudo! Calúnias!
Mentiras!
E colocou dois em sua frente e uma jarra de
refresco de manga sobre a mesa, perto de Marinalva.
Estavam na copa do governador,
que era o lugar mais fresco da casa, sentados ao redor da mesa quadrada coberta
de papéis.
- Beba um refresco, madame, disse ele.
- Muito obrigada, Governador, respondeu ela,
lisonjeada.
Eduardo Ribeiro falava como se dirige às
massas, ainda que estivesse apenas com o advogado e sua esposa.
Aquela copa era o seu gabinete de trabalho,
anexo à sala de jantar. Era a primeira vez que o advogado entrava na mansão que
Ribeiro chamava de chácara, o chalé da Cachoeira Grande.
Ribeiro tinha móveis exóticos,
importados de vários lugares do mundo, algumas cômodas venezianas, poltronas
voltaire que talvez tivessem vindo do
Teatro Amazonas, tapetes exóticos, quadros de Crispim do Amaral, pássaros,
animais raros, jardins de orquídeas, catléia superba, catléia el-dorado, lago,
tanque com cisne, um pequeno bosque ricamente preparado, caramanchões.
Eduardo Ribeiro vivia
suntuosamente no seu pequeno palácio.
Ele passou para o outro uma
folha de papel com a lista dos seus bens em discussão.
- Ladário e Gregório me acusam de
enriquecimento ilícito.
- Sim, disse o outro.
Marinalva começou a se meter na conversa:
- Cretinos! disse ela. Vão pro Inferno!
Lima Silva tentou impedi-la de falar, mas
Eduardo Ribeiro se antecipou:
- Vão mesmo, madame, disse ele, gostando.
E a seguir:
- Vejamos: O primeiro terreno...
Sim, o primeiro terreno comprei de Juvêncio Alves. É posse antiga, na Praça da República.
Custou 5.000$000.
Lima Silva anotou esse número numa folha de
papel.
- Os terrenos número 2, 4 e 16 dessa lista,
disse com naturalidade Ribeiro, foram comprados aos herdeiros do Capitão Nuno
por 600$000, 2.000$ e 500$000 respectivamente. Estão fora de Manaus.
Marinalva jogava todo o seu charme em cima de
Eduardo Ribeiro. Em dado momento encostou sua perna por baixo da mesa na dele.
Ele delicadamente a afastou. Como ela repetiu alguns minutos depois, ele deixou
e com a mão acariciou-a por entre as pernas, curvando sobre o papel que o
marido estava atentamente lendo.
Lima Silva nada via ou fingia não ver.
Examinava as contas e começava a prever a dificuldade.
- O terreno número 3 está avaliado em 150$ e
me foi doado pelo Dr. José Mello, juiz de direito. Está fora da Capital.
- Continue, governador.
- O terreno número 5 foi comprado por 100$000
ao Doutor Joaquim Lalor.
- O senhor dispõe dos recibos, não?
- Sim, claro, todos. O Thaumaturgo diz que
custou 1.500$000.
- Mentiroso! – disse Marinalva. E conseguiu
dar um leve beliscão na coxa do outro.
Lima Silva suspirou, bebeu um gole de água. Mas Eduardo Ribeiro gostou
do apoio e disse:
- Sim, madame, mentiroso e covarde!
E continuou:
- Os terrenos de 6 a 16 estão na mesma situação,
disse Eduardo Gonçalves Ribeiro com muita dignidade. E foram comprados pelos
preços que estão nas escrituras.
Houve um silêncio constrangedor na sala.
- E os prédios? – perguntou, com voz neutra, o
Dr. Lima Silva.
- Sobre os prédios que possuo em Manaus... No
da Praça da República gastei 49:684$200 na sua construção.
Eduardo Ribeiro citava de memória, que era
prodigiosa.
- Este chalé aqui não custou 500 contos, como
o crápula inventou! Gastei 48:800 para construí-lo. Não é luxuoso, como o
Senhor vê, apenas especial e elegante.
E levantando-se caminhou até a sacada, de onde
apontou:
- Não tenho raridades da natureza, como a
acusação aponta, mas uma variedade de animais que mandei vir da América.
- São lindos, disse Marinalva.
Ele, voltando para Lima Silva, disse:
- Tenho um prédio, que o Senhor certamente
conhece, na rua Henrique Martins, comprado por 30 contos...
- Muito bonito por sinal, disse Marinalva.
- Obrigado Madame, sim, é bem elegante.
E a seguir disse:
- E a casa de minha velha mãe,
no Maranhão, na rua de Santana número 110, comprei por 6 contos.
- Como ela está? Perguntou
Marinalva.
- Não muito bem, madame. Está
quase cega de um olho e tem fortes dores reumáticas.
- Reumatismo? Eu tenho um santo
remédio, disse ela, tentando ajudar. Diga para tomar extrato de sucupira, bem
forte, toda manhã...
- E a casa de sua irmã? Perguntou Lima Silva,
tendo disfarçar o vexame.
- A casa de minha irmã, na rua São João, no
Maranhão, foi-me doada, em 1893, por amigos de Manaus, que não quiseram revelar
o nome.
- Vejamos os ativos monetários, Dr. Eduardo.
- Sim, sim. No Banco do Amazonas tenho 30
ações de 200$ cada uma.
- Na Cooperativa Militar?
- Ali tenho apenas 172 ações que valem 20$
cada uma. Eu as comprei quando ainda era estudante.
- No Maranhão?
- No Maranhão tenho 17 ações da Companhia de
Viação Maranhense, hoje muito desvalorizadas.
- Sim, disse o outro. Eu conheço.
- E aqui tenho 3 carroças e um carro de luxo –
uma vitória, o senhor viu, que comprei por 9:000$.
Lima Silva já estava atônito, mas não se
revelava. Mantinha-se de reserva. E perguntou:
- O Senhor, Governador, tem com provar a
origem desses bens? Quanto recebeu?
- Certamente, disse o outro com uma calma
palaciana.
E tirando um papel da gaveta começou:
- Como comandante militar recebi 12 contos
oitocentos e setenta mil réis (12:870$000).
E continuou:
- No meu primeiro mandato, como Governador
Provisório, recebi 9 contos novecentos e quarenta mil réis (9:940$000).
- Sim, estou anotando.
- Como tenente recebi novecentos mil réis
(900$000).
Marinalva estava sorridente e flertava
abertamente.
- Sim, pois não.
Eduardo parou, para refletir. Depois disse:
- Como Governador do Amazonas, no meu segundo
mandato, recebi 137:500$000.
- E como Capitão do Estado Maior?
- Recebi 13:250$000.
Lima Silva rapidamente somou.
- Somando tudo dá uns 173:420$000, disse Lima
Silva.
- Sim, disse o ex-líder, com voz de liderança.
Mais o que recebi como professor particular, de gratificações, de orçamentos e
consultorias deve somar uns 200 contos. Sempre fui muito econômico, todos
sabem.
Marinalva aplaudiu.
Sem se importar, Lima Silva parou para
refletir um momento e começou a bater com o lápis nos dentes.
Fez-se um silêncio diplomático.
Depois Lima Silva disse:
- Governador, vai ser difícil para mim. Eu não
me sinto preparado para defendê-lo. Está acima de minhas qualidades jurídicas.
Para este caso eu aconselharia um advogado do porte de Ruy Barbosa.
Na despedida, já à porta, Marinalva beijou
Eduardo Ribeiro. Ela era bem mais alta que ele e teve de curvar-se.
- Governador, disse ela, o senhor é o político
mais honesto que eu conheço. Eu o amo, Governador! Eu o amo!
- Obrigado! Obrigado, minha senhora, respondeu
Eduardo Ribeiro beijando sua mão e realmente feliz.
E acrescentou:
- Em todo caso, doutor, gostei muito de sua
visita. Venham os dois jantar comigo na
quinta-feira. Eu insisto!
E foi assim que, graças à Marinalva, começou a
grande amizade de Lima Silva com Eduardo Gonçalves Ribeiro.
O que o marido nunca soube foi que, já no dia
seguinte, depois que ele saiu para o escritório, Marinalva foi ao Mercado e lá
um emissário secreto do ex-governador entregava nas mãos de sua mulher um
bilhetinho do governador.
15. HOTEL BRASIL, PARIS
O professor Carlos Augusto estava em Paris
para observar a metodologia de ensino nas escolas de S. Gil, de Bruxelas. Na
época era Secretário da Educação do Amazonas.
Na manhã do dia seguinte
aproveitou para dar uma caminhada no Jardim de Luxemburgo, ali perto. Depois
foi pelo Bulevar Saint-Michel até a rua da Sorbonne, voltou pela Saint-Jacques,
dobrou a direita até a rue le Golf, onde ficava seu hotel.
Depois da caminhada, sentou-se
na sala de recepções, lendo os jornais.
Foi quando viu entrar pela porta
o seu amigo Lourival Muniz.
Muniz tinha sido seu colega de
escola. Ambos foram alunos do maestro Adelelmo.
Lourival Muniz estava
acompanhado de Lourenço Mello, que desde jovem já falava muito bem francês, e
era um pequeno gênio, um pequeno caboclo amazonense genial.
Mello nasceu no rio Purus, no
famoso Ayapuá, em 1854, trabalhou no comércio, na catequese dos índios “muras”,
foi Diretor de Índios e Delegado de Polícia.
Muniz tornou-se violinista, como
seu mestre Adelelmo. Estava na Europa aperfeiçoando sua técnica com vários
professores. Lourival Muniz foi talvez o melhor aluno do maestro, capaz de
escrever uma transposição de tom de improviso.
Logo se reuniram os três na mesma mesa.
- Felix Weingartner vai reger a
orquestra de Viena amanhã, disse Muniz. Eu consigo ingressos.
- Excelente! exclamou Augusto.
- Como vai nosso Teatro Amazonas? Perguntou
Lourenço Mello.
- Este ano tivemos “La Boêmia” em janeiro. Em
janeiro, acrescentou disse Bittencout, teremos a “Cavalaria Rusticana”, “I
Pagliacci” e outras.
- Não diga! Fez Muniz, batendo as mãos com
expressão animada.
- Sim, continuou Augusto. Em “I Pagliacci” o
cantor fez sucesso com o “Vesti la giubba e la faccia infarina”.
- Sim? E o maestro?
- Foi o mestre Carvalho Franco. Estava com a
Companhia Tomba, com oitenta figuras, dirigida por Gennaro Pesce.
E tirou um jornal da pasta, que abriu sobre a
mesa:
- Aqui está no jornal italiano “Almanacco”.
- Mas não diga! Exclamou o aluno de Adelelmo.
Estamos no circuito internacional!
- Sim, sim, disse Carlos Augusto. E teremos
“Salvador Rosa” de Carlos Gomes, duas de Puccini...
- Bohême e Manon Lescaut...
- Sim. E mais Verdi e Rossini.
- O maestro Franco está-se desgastando na
corrida empresarial. Ele é mau negociante, atrapalhado, distraído. Por isso
ganhou fama de mau pagador.
- O quê?
- Sim, tem muitos inimigos...
- Invejosos...
- E como é um artista, está todo atrapalhado.
Os músicos da orquestra estão debandando... Por isso, para saldar os
pagamentos, fez uma récita dedicada a Sebastiana Nery, esposa do governador. A
alta sociedade compareceu, pagando muito. As entradas foram muito caras, mas
todas vendidas.
- Mas ocorreu um desastre... e que pode
prejudicar a vida cultural no Amazonas, disse Augusto.
- Que foi? Perguntaram os outros dois ao mesmo
tempo.
- A atriz Giannina Barone faleceu, vítima de
malária, a bordo do vapor “Rio-mar”.
- Céus!
- Sim foi, disse Augusto.
- E houve outra morte, não foi?
- Sim, amigos. A cantora Anita Occhiolini, da
Companhia Tomba, morreu em Belém, dizem que também vítima da malária.
- Isso?
- A “Folha do norte”, do dia 12, disse que ela
morreu de febre amarela na Casa de Saúde São Francisco, de madrugada. Tinha 33
anos. Nem chegou a cantar em Belém, pois só apareceria em “ Pallacci”.
16. RIO DE JANEIRO, MAIO DE 1897
Costa Azevedo e Gregório Thaumaturgo se
encontraram na porta da tipografia do Jornal do Comércio, na Rua Moreira César,
59-61.
Thaumaturgo corrigia as provas
do seu livro de acusações contra o ex-governador Eduardo Ribeiro, livro
intitulado “Eleição Federal” (a eleição para Senador de 30 de dezembro de
1896).
- Neste folheto estão a contestação e os
pareceres da Comissão, disse o General Thaumaturgo de Azevedo. Foi o que
apresentei, com um correligionário, à Comissão de Poderes da Câmara dos
Deputados.
- Certo, disse Ladário, com um pigarro.
Costa Azevedo era o Barão de Ladário.
- Todos os documentos e o artigo do José
Rodrigues Vieira estão aqui.
- Eduardo Ribeiro pretende meu lugar no
Senado, disse Ladário. Você publicou meu artigo?
- Sim, respondeu o outro, com um puxão no
pescoço. E mais, publiquei a lista dos terrenos roubados por Eduardo Ribeiro
enquanto governador.
- A eleição de 30 de dezembro foi fraudada,
disse Ladário, tossindo. Eu venci.
Resolveram jantar juntos, discutir melhor o
assunto. Continuaram falando enquanto se encaminhavam em direção ao carro que
os levaria ao restaurante.
- Ainda que tivesse sido eleito legalmente,
disse o general Thaumaturgo, entrando no carro, não pode ter assento no Senado
sem primeiro se defender das acusações que pesam sobre ele.
Minutos depois, entravam na Colombo.
- Eduardo entrou pobre e saiu milionário,
acrescentou o general.
- Ele mesmo contou que, num só dia, gastou
80:000$000 com a eleição.
- Onde ele disse isto? – perguntou o general.
- Diante da Comissão do Parlamento, perante um
grande auditório.
- Louco. E faz alarde! E ainda diz que as
autoridades lhe obedecem.
- Ele disse que “Fileto era criatura sua”,
continuou Ladário.
Riram-se.
- Fileto está contra ele, fez o General com o
dedo.
- Se tudo for provado, ele não senta no
Senado, argüiu Ladário, tossindo e bebendo o copo d’água que o garçom lhe tinha
posto em frente. Não entra!
Thaumaturgo também bebeu água.
O General se vingava de seu
maior desafeto. Thaumaturgo odiava Eduardo Ribeiro e o Marechal Floriano, que o
depuseram do cargo de Governador do Amazonas em circunstância humilhante.
Thaumaturgo tinha aderido ao
golpe de Deodoro, contra Floriano, mas veio o contra-golpe vitorioso de
Floriano e este ordenou sua deposição. Eduardo e Fileto participaram da
deposição.
O general tentou resistir à bala
com “um exército de índios” (como disse Eduardo Ribeiro). Algumas pessoas foram
feridas no cerco ao Palácio, mas Thaumaturgo acabou saindo de madrugada no
navio do Loyd Brasileiro que partia para o Sul.
Homem de grande dignidade, o
general nunca perdoou a humilhação. Agora dava o troco. O Marechal Floriano
tinha falecido dois anos antes.
- Ele afirma que as acusações não são
verdadeiras, disse Ladário, tossindo.
- Mas eu venho com provas materiais.
- A eleição dele para o Senado foi o caos,
disse o Barão de Ladário. Houve violência, fraude, sumiram votos.
- A cadeira de governador pertencia, por
direito, a Jônathas Pedrosa, republicano histórico, médico distintíssimo,
cidadão de reputação ilibada e o mais popular do Amazonas.
- Imagine, general, que o Eduardo teve coragem
de me atacar, por telegrama, dizendo que “me substituiria na cadeira em que tão
impatrioticamente eu me sentava”.
- Insulto, general, um insulto!
- O patife pensa que é deus, concluiu o outro.
17. EDUARDO RIBEIRO ACUSADO
- Infâmia! – gritava Eduardo Ribeiro.
- Calúnia! – berrava,
enlouquecido de ódio, o ex-governador.
Na escadaria de sua casa
discursava para um grupo de 5 populares como se falasse para a multidão. Embora tivesse 1 metro e 57 centímetros de
altura, ele crescia, quando discursava.
- No meu primeiro Governo fui aclamado em
abril de 1891, gritou ele, depois do ato de violência de minha demissão
promovida pelo Senador Joaquim Sarmento.
(Aplausos e vivas).
- Entre os que assinaram a minha aclamação
estão Jonathas Pedrosa, Leonardo Malcher, Leandro Antony, Lima Bacury, Moreira
Cesar, Antonio Bittencourt, Deocleciano Bacellar, Paulo Ponce de Leon,
Francisco de Palma Lima e mais 363 nomes.
- Pessoas da mais alta qualidade! –
acrescentou.
Eduardo Ribeiro estava possesso.
Discursava aos gritos. O pequeno grupo aplaudia.
- Passei o governo para o Barão do Juruá,
depois deste meu primeiro e curto governo.
- Organizei o Estado – continuou
- fiz a Primeira Constituição do Estado, comecei a reforma da Instrução
Pública, reformei a magistratura. Nunca fui acusado de nada!
(Palmas. “Muito bem!”)
- Saí triunfante de Manaus, e não corrido como
um cão, como o Thaumaturgo...
- Depois assumi a minha cátedra
de professor na Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, na Praia Vermelha.
E tomando fôlego:
- Imorais! - bramia ele, exibindo uma folha de
jornal. Preparam um golpe contra mim!
- O corrupto, gritou, começou
seu governo solicitando um empréstimo de 14:000$ para sua própria empresa
predial! – Corrupto!
Eduardo começou a tremer.
Não continuou.
Seu medico o levou para o
interior da casa. Foi o início de sua decadência, doença e morte.
18. O DIRIGENTE ESCLARECIDO
- José Paranaguá foi o melhor governador do
Amazonas, disse Lima Silva no meio do jantar que se oferecia no palacete Scholz.
Presentes estavam o juiz Regalado Batista; o
ex-deputado geral às Côrtes do Império Adriano Pimentel; o dr. Aprígio Martins de Menezes, homem
culto, médico, poeta e professor; o engenheiro João Carlos Antony e Lima Silva.
- Sim, disse Regalado Batista. José Lustosa da
Cunha Paranaguá governou a Província do Amazonas de março de 1882 a fevereiro
de 1884.
- Por quê o melhor? – perguntou
Scholz.
- Pelos empreendimentos
científicos que levou a efeito, - respondeu o juiz Batista – pela solução dos
problemas que reclamavam os setores do comércio, da indústria e da navegação.
- Paranaguá era moço, continuou,
tinha 26 anos de idade, era culto, apaixonado pelas artes, ciências e letras,
com uma educação bem cuidada que recebera de ilustres ancestrais. Era filho do
Visconde de Paranaguá, neto de Montserrat, magistrado do Império.
- José Paranaguá em dois anos
levou a efeito uma gestão com as mais notáveis realizações, disse Lima
Silva.
- Explique melhor, fez Scholz,
dando uma baforada no charuto e contemplando a linha do horizonte.
Disse o juiz:
- Paranaguá reformou a instrução
pública, primária e secundária; lançou a pedra fundamental do imponente Teatro
Amazonas; criou o Montepio Provincial e Municipal; fundou o Museu Botânico
Amazonense, convidando o sábio Barbosa Rodrigues para organizá-lo e dirigi-lo;
firmou contratos para estabelecer novas linhas de navegação, inclusive com a
Europa; organizou os serviços de abastecimento d’água e alimentar da capital;
deu inicio, de forma organizada, aos serviços de estatística; incentivou o
movimento de abolição da escravatura; estabeleceu serviços de exploração de
vários rios; patrocinou expedições científicas ao interior; promoveu o
incremento da pecuária, abriu campos; restabeleceu o Instituto de Educandos
Artífices, que se encontrava fechado; aumentou as linhas de navegação para os
altos rios, construiu igrejas, trapiches, cais, rampas, mercados; processou
legitimações e demarcações do domínio particular; desenvolveu propaganda intensa,
na Europa, dos produtos amazônicos; fundou, em Manaus, a Biblioteca Pública
Provincial.
- Sua gestão foi um marco na
História do Amazonas. Critério, honestidade e tino de um jovem.
E depois de um gole de
champanhe:
- Deixou o Governo com uma reserva
de quase mil contos de réis, nos cofres provinciais, tendo empregado, só no
último ano de sua gestão, mais de quinhentos contos de réis em obras.
Lima Silva entrou na conversa,
dizendo:
- Ele assistiu ao comércio,
desenvolveu as indústrias, fomentou a agricultura e a pecuária.
O deputado Adriano Pimentel
concordou:
- O comércio, as artes, as
indústrias, as letras e as ciências muito lhe devem nesta parte do
Império.
- Quem tiver estudado, disse
Martins de Menezes, as grandezas dessa região chegará ao nome de José
Paranaguá. Ele se destaca a nossos olhos, dentre as administrações que se tem
sucedido nesta Província.
- Ele, disse o engenheiro João
Carlos Antony — elevou, levantou a classe dos empregados públicos e dos
professores. Mandou que a Província fosse representada na exposição
antropológica brasileira.
- A honra e o dever, a justiça e
a inteligência guiaram Paranaguá, disse Regalado Batista.
- Paranaguá mandou vir,
acrescentou Lima Silva, para a Biblioteca Pública que criou, diretamente da
Europa, diretamente dos editores parisienses, obras valiosíssimas, importantes
coleções, selecionadas pelo Barão de Ramiz Galvão que dirigia a Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro.
E concluiu:
- Mais de mil volumes foram
remetidos de Paris para Manaus, que chegaram pelo vapor “Paraense”. Custaram
sete contos de réis. Paranaguá recomendou a organização de uma seção
constituída exclusivamente da bibliografia amazônica, solicitando a Franklin
Dória, na capital do Império, a indicação das obras de possível aquisição.
19. A RENÚNCIA DO DR. FILETO PIRES FERREIRA
“Ao Presidente e mais Membros do
Congresso Amazonense.
“Paris, 27 de junho de
1898.
“Saúdo-vos, apresentando-vos os
mais sinceros e cordiais protestos de meu acatamento e respeito para convosco.
Cumprindo o preceito constitucional venho trazer-vos hoje a renúncia do cargo
que exerço nesse Estado, do qual sois dignos representantes, por não me ser
possível por motivos de ordem superior continuar a exercê-lo. Vós melhor do que
ninguém sabeis que aceitei delegação do povo amazonense depois de reiterados
pedidos de todos os nossos amigos; delegação, repito, que por mim jamais foi
ambicionada e que hoje não o é. Discípulo de Benjamim Constant, inspirado nos
seus ensinamentos é convicção minha que a tolerância e a transigência deviam
ser sempre as qualidades de um homem publico. Fiz tudo o que as minhas forças
comportaram e não me acusa a consciência de me haver afastado da linha que
propus-me seguir. Tomando esta resolução sugerida pelos ditames de meus
sentimentos, determinada pelo império das circunstancias deixo bem patente aos
meus concidadãos que dos cargos que na política ocupei apenas me prendiam a
vontade e o desejo de por intermédio deles ser útil ao meu país. Crente de que
o digno povo amazonense saberá fazer-me justiça, envio-lhe as expressões dos
mais ardentes votos que faço pela prosperidade e engrandecimento que lhe
asseguram as suas riquezas e o patriotismo acrisolado dos seus filhos.
Saúde e fraternidade.
Fileto Pires Ferreira.”
- Que carta é esta? – perguntou
Scholz assustado e pondo o jornal sobre o tampo da rica mesa de mármore da
varanda de sua casa, mesinha de mármore brecha vermelho sobre um tripé de ferro
floreado, feminino, num gesto da oferenda de simbolismo francês, com um ramo de
musácea, exótica estrelícia, de pétalas retas em forma de pássaros comprimidas
em cristas laranjas de inspiração art-nouveau, meditações do nó, e do sarugaku
acrobático, aéreo, ao lado de uma pequena escultura de Pierre Jean David, por
que o alemão dera uma pequena fortuna.
- É falsa, disse Lima Silva. A
maior fraude da História do Brasil!
- Não diga isto! – exclamou o
alemão, estupefato.
- Sim, meu amigo. O Dr. Fileto
não pediu renúncia.
- Mas a carta, a assinatura, o
reconhecimento da firma?
- Tudo falso. Reconheceram a
assinatura falsificada.
- A carta é muito bem escrita,
nos moldes republicanos, disse Scholz.
- A assinatura foi falsificada
pelo vice-governador Ramalho, que não faz mistério sobre isso, disse Lima
Silva.
- Paira um humor sórdido na
imprensa escandalosa, acrescentou Lima.
- Mas estão dilapidando a honra
de um homem da altura de Dr. Fileto Pires, disse Scholz. Eu o conheço e sei da
elegância de sua cultura.
- Fileto é um político honesto,
um grande homem, disse Lima Silva. Seu governo foi comparativamente melhor do
que o de Eduardo Ribeiro. Fileto governou somente 19 meses, mas foi eleito para
quatro anos, até 1900.
- Fileto era o sucessor natural
de Eduardo Ribeiro, disse Scholz.
- Mas superior a ele, mais culto,
mais preparado.
- Sim?
- Fileto movimentou-se num
ambiente de intrigas palacianas, de competições, disputas, privilégios. Mas era
um romântico, só poderia destruir-se.
- Parecia um homem equilibrado,
disse Scholz.
- E é. Pediu uma licença médica,
viajou para Paris com a licença médica e um crédito especial de 500 libras
mensais, além dos subsídios de Governador e a representação ordinária. Fileto
não desconfiou que era uma armadilha. Em discurso, elogiou Campos Sales,
inimigo da elite amazonense. Aí Ramalho viu que era a oportunidade do golpe.
Disse que quem vai tratar da saúde não participa de banquetes. Deram-lhe uma
rasteira. Fileto acordou no Grand Hotel com a notícia escandalosa de sua
própria renúncia!
O processo de difamação só tinha
começado. Os poetas da sarjeta debocharam:
Fileto Pires Ferreira
Foi à França por seu gosto,
Veio de lá na carreira,
Gritando que foi deposto.
- O autor da deposição foi
Eduardo Ribeiro, presidente do congresso desde 15 de julho, disse Lima Silva.
Capitão Fileto Pires
O homem de opinião,
Saiu daqui com dinheiro,
Voltou sem nenhum tostão,
Entrou de rodaque e botas,
Acabou de pés no chão.
Anos depois aconteceu o mesmo.
Em 1910, com o coronel Antonio Clemente Ribeiro Bittencourt. No caso de Fileto foi
pedida a intervenção federal, mas o congresso nacional rejeitou, por 65 votos
contra e 52 a favor, alegando a soberania estadual.
Além disso, Fileto estava sendo
injustamente acusado de prevaricação, peculato e suborno, de acordo com a lei
de 5 de outubro de 1892. Havia boatos indecentes vindo na imprensa corrupta,
procurando colocar a colônia estrangeira contra ele, e, além disso, se dizia
que em Manaus reinava o terror.
20. SHAKESPEARE NO TEATRO
AMAZONAS
Jantar no Restaurante Francês, no centro de
Manaus.
Todos foram convidados por
Scholz, após “Otelo”, no Teatro Amazonas, com a Companhia Italiana de Dramas e
Tragédias e o famoso Emanuel.
Giovanni Emanuel desembarcou no
cais da Ponte dos Catraieiros, em Manaus, no dia 12 de maio de 1899,
acompanhado de "formosíssima dama", Nella Montagna, primeira atriz da
Companhia Italiana de Dramas e Tragédias.
- Além do vinho, querem refresco??
– perguntou o garçom.
- Livros há, hoje, e teses sobre
ele, disse Lima Silva.
- Sim?
Grande intérprete de Shakespeare, Giovanni
Emanuel (Morano Po, Casale, 1848 – Torino 1902) revolucionou a cena italiana.
- Você o conhecia antes?
- Sim, respondeu Lima Silva.
- Emanuel escreveu que usa o
cérebro e o coração de Otelo.
- Ele revolucionou a dramaturgia, acrescentou.
- Sim, respondeu o Maestro Franco.
- Ele tinha a consciência de que
seguia por um caminho artístico novo, uma novidade.
- O seu caráter original e o
ecletismo do seu método são incomparáveis, disse Crispim do Amaral.
- Ele é inconstante,
descontínuo, passa do sublime para o familiar, acrescentou Scholz.
- Contraditório, opinou Crispim do
Amaral.
- Ele faz o contrário do modo de
interpretar de Rossi e de Thomas Salvini. O primeiro faz Shakespeare romântico,
o segundo faz trágico.
- O ator, continuou Scholz, não
tem que ser romântico na recitação trágica, mas tem que recitar a “verdade”.
Shakespeare não tem nem romantismo nem tragédia, sua grandeza está nos
caracteres, na verdade.
O maestro Adelelmo na cabeceira da mesa
sacudiu a cabeça e acrescentou:
- Emanuel começa por traduzir-se a si mesmo,
exagera a modernidade vulgar de certas expressões, o que lhe dá um efeito
diferente.
- Ele é conhecido como o líder
do naturalismo teatral na Itália, disse o maestro Franco, como ator
experimentalista, como uma escola nova.
- Sim, disse Crispim, o
dramático representa o caráter do homem, sem fantasias e afetação.
- Sua preocupação principal no
palco, acrescentou Lima Silva, consiste em humanizar o herói trágico.
Naturalidade interpretativa.
- Contra o convencionalismo,
acrescentouu Crispim, já vermelho de vinho. Mas, como todos os artistas, sabia
que mesmo no naturalismo o teatro não é capaz de reproduzir a realidade.
- Emanuel faz uma arte neurótica
e moderna, disse o maestro Adelelmo.
- O sucesso de público de
Emanuel, acrescentou Crispim, mostra que o público aceita isso.
- Ele não recita, mas fala, grita,
não como um ator, mas como um homem. Sem convencionalismo.
- Otelo parecia para mim um
homem vivo, de carne e osso, disse Scholz.
- Mas com grande efetividade,
disse Crispim.
- Ele é o Otelo dos nossos dias,
como se estivesse real. Lá estava ele, estava lá, realmente, em cena.
Manaus era uma cidade de 50 mil habitantes, encravada no meio da
floresta. Tinha uma sociedade de nível cultural elevado. O governo pagou
duzentos contos de réis para que a Companhia Italiana de Dramas e Tragédias
apresentasse vinte e nove espetáculos no Teatro Amazonas. "Otelo",
"Romeu e Julieta", "Rei Lear", "Hamlet" e "O
mercador de Veneza" de Shakespeare. “A Dama das Camélias", de Dumas,
filho.
Partiram de Manaus a 6 de julho do
mesmo ano de 1899, no vapor "Continente", depois de quase dois meses
em Manaus. O nome de Emanuel está gravado numa placa de mármore, nos corredores
do Teatro Amazonas, como a pedir respeito e veneração por aquela casa ilustre,
que soubera entender e aplaudir o teatro shakespeariano.
21. QUEM FOI EDUARDO RIBEIRO?
Waldemar Scholz colocou a espingarda
Winchester na mesa baixa e pôs-se a acender o charuto. Olhava a longínqua
margem do Rio Negro, em frente.
Francisco Ferreira de Lima Silva esperou que
Waldemar Scholz terminasse de acender o charuto. A fumaça elevou-se no ar onde,
ao longe, um solene gavião amazônico fazia seu vôo lento e traiçoeiro.
- Você bebe qualquer coisa? Perguntou Scholz,
sacudindo no ar o seu grande anel de treze diamantes.
- Sim, obrigado, respondeu Lima Silva. Um
refresco, disse.
Scholz tocou a sineta e a jovenzinha índia,
muito sorridente e bela, apareceu.
- Traga refrescos, disse. De açaí, completou.
Scholz ainda falava um português excelente,
quase sem sotaque.
Lima Silva e Scholz continuavam grandes
amigos, como há anos. Riquíssimo, muito culto, Scholz tinha poucos amigos.
Aprendeu a falar português, e depois o dominou à perfeição. Durante anos
preferiu a pequena colônia alemã. Pequena, mas ativa. O “Clube alemão” era uma
casa de diversão e reunião de artistas e intelectuais, alemães ou não. Antonio
Bittencourt, pai do professor Agnello Bittencourt, o freqüentava, para
exercitar o alemão. Mas o Clube Alemão teve vida curta.
Scholz tinha um escritório e um
armazém na Rua dos Remédios. Ele fazia compra e beneficiamento da borracha para
exportação. Admirava a cultura de Lima Silva, sempre bem informado. E este
gostava da convivência com o magnata alemão, de quem recebia favores, viagem
para Paris etc.
Naqueles dias havia boatos sobre o estado mental
de Eduardo Ribeiro, que vivia recluso em sua chácara.
Subitamente Scholz dispara:
- Meu amigo, quem é este Eduardo Ribeiro? – e
voltou a apontar a Winchester 73. Com o primeiro movimento, elevou o cartucho
do carregador para o nível do cano. Com o segundo, para trás, o cartucho foi
introduzido no cano. Depois, ao puxar o gatilho, disparou a arma em direção do
espaço.
Scholz adorava armas. Era um colecionador.
- Como assim? Indagou Lima Silva.
- De onde vem, quem são seus pais? Quis saber
Scholz.
- Bem... Respondeu Lima Silva, reticente. Ele
não tem, digamos, nenhuma origem importante. Nasceu em São Luís do Maranhão,
família muito pobre. Nem se sabe o nome de seus pais. Seu pai era filho de
escravos, e tinha a cabeça fraca. Morreu louco.
Houve um silêncio.
- É verdade? – retrucou Scholz, depois de
outro tiro.
- Sim, é verdade.
- Ele é ateu?
- Não sei. Deve ser positivista.
Depois de um gole de refresco, Lima Silva
acrescentou:
- O baixinho é militar, engenheiro, estudou na
Escola Politécnica, foi lotado no Terceiro Batalhão de Artilharia, sediado
aqui.
- O mesmo onde serviu o Floriano Peixoto em
Manaus?
- Sim, sim, confirmou Lima Silva, cruzando as
pernas. É onde se devem ter conhecido. Foi promovido a Capitão em maio de 1891,
viajou para o Rio de Janeiro para assumir o cargo de professor da Escola
Superior de Guerra. Mesmo morando no Rio de Janeiro, continuava participando da
política amazonense. Quando retornou a Manaus, assumiu novamente o governo, em
março de 1892.
E depois de uns instantes de silêncio, falou:
- Ele tem um problema... – disse Lima Silva.
- Problema? – perguntou Scholz.
- Sim, uma certa disposição para a...
depressão.
- Como seu pai? Explique: Eduardo Ribeiro é
louco? – perguntou, espantado, o velho alemão.
- Não sei. Não é exatamente louco, mas,
digamos assim, tem problemas mentais.
- É um homem estranho, disse Scholz.
- Sim, um misantropo, um solitário, um
casmurro.
- Porque nunca se casou? Quis saber Scholz,
sabendo que Eduardo Ribeiro tinha tido um romance oculto com D. Marinalva,
esposa do seu amigo.
- Não sei, respondeu Lima Silva. Dizem que
vive com uma senhora e que tem um filho. Mas nunca se viu nada, nunca se soube
de nada.
- Um filho? Exclamou Scholz.
- Sim, respondeu o outro. Uns dizem que o
rapaz mora em Minas, outros no Rio de Janeiro.
- Onde estará este filho?
- Ninguém sabe.
- Ele é republicano ou monarquista?
- Um republicano não muito convicto. Um
republicano como todos os outros cadetes de sua idade. Ele gosta de ser chamado
“cidadão”. Costuma dizer que, pobre ou rico, todos são iguais na República.
Demonstra muito respeito pelo cidadão comum...
- Como ele mesmo é um cidadão comum.
- Sim, concordou Lima Silva. Ele é um homem do
povo, veio do povo. Por isso é tão amado pelo povo.
- Como Napoleão, ironizou Scholz. E odiado das
elites...
- Sim.
- Ele é muito convincente, competente.
Administrou o Estado com a precisão de uma máquina, com uma precisão
matemática.
- Sim, meu amigo, disse Lima Silva. Mas não
seria nada sem seu Secretário de Estado, Fileto Pires Ferreira.
- Eduardo Gonçalves Ribeiro é formado em
quê?
- Matemática, respondeu o outro.
- Por isso as obras avançaram, as decisões não tardavam, tudo era
agilizado, sem burocracia, sem atraso. Tudo obedecia a um cronograma, tudo era
resolvido no seu tempo, no menor tempo possível. Ele realizou uma grande
quantidade de obras ao mesmo tempo, na capital e no interior, e tudo fluiu com
uma precisão matemática. E todos o obedeciam.
- Ou o temiam.
- É verdade. Ele é uma espécie de ditadorzinho
e todos o temem. Autoritário, arrogante, gosta de humilhar os poderosos, os
brancos, os ricos, mostrar que é superior.
- Porque é negro, pisa nos brancos. E fez uma
infinidade de inimigos na classe dominante.
- Sim, Scholz, sim. Tem inimigos por toda a
parte. Conspiram contra ele. Chego a dizer que sua vida corre perigo.
- Ele é o primeiro Governador negro do Brasil.
- Sim, é ele.
Naqueles dias, era moda a elite econômica
amazonense dizer: “É preciso acabar com o negro!”, referindo-se a Eduardo
Ribeiro, ao Governador do Estado, o homem mais poderoso da história do Amazonas
que, em quatro anos de mandado, transformou Manaus de uma aldeia numa cidade
moderna, conforme ele próprio declarou na mensagem ao legislativo. Ele
planificou e nivelou a cidade, fez grandes nivelamentos e desaterros, removeu
entulhos, aterrou igarapés e valas, construiu grandes muros de contenção que
ainda hoje podem são vistos nos fundos da escola normal, na atual Rua Simão
Bolívar. Ele abriu vias e estradas, fez lombadas, abriu ao trânsito os
caminhos. Ele fez em seu governo o que ninguém conseguiu fazer, nem antes nem
depois, como a canalização da água (usada até hoje), o grande reservatório de
água que ainda existe e tem inscrito o seu nome. Edificou escolas, um
gigantesco Palácio da Justiça, várias pontes usadas até agora, o edifício do
Diário Oficial, a casa de máquinas de bombeamento de água no Igarapé da
Cachoeira Grande. Fez o prolongamento da estrada Epaminondas até a longínqua
Colônia João Alfredo. Fez os calçamentos e retificação das ruas, alargou várias
praças. Erigiu vários monumentos. E principalmente continuou e quase terminou a
construção do monumental Teatro Amazonas.
- Quem é este homem, voltou a indagar W.
Scholz.
Lima Silva não respondeu. Depois disse:
- Sua maior obra não seria o Teatro Amazonas,
disse Lima Silva.
- Qual então? – quis saber o velho alemão.
- Seria o Palácio do Governo...
- O seu Palácio, o “Palácio de
Eduardo Ribeiro”, respondeu Silva. Está projetado para ser o maior edifício já
construído no Brasil.
Scholz disparou outro tiro. O estampido foi
ouvido à distância.
Palácio do Governo nunca foi concluído. A
parte que já estava edificada foi demolida no governo de Silvério Nery.
Pouco antes de sua morte,
Eduardo Ribeiro gritava, no leito de morte:
- Não deixem que meu palácio seja demolido...
Depois que deixou o governo, ele candidatou-se
ao Senado em oposição a Guilherme Moreira, e ganhou a eleição. Porém a manobra
política dos seus inimigos não permitiu que ele tomasse posse. Depois, foi
eleito Deputado Federal pelo Amazonas, ocupando esta função até sua morte.
- O povo o ama, disse Scholz, disparando outro
tiro.
- O povo o matará, retrucou Lima Silva.
22. RUI BARBOSA
- Um telegrama do Recife para o
“O País” de ontem – disse Rui Barbosa - dá-nos conta de que “o governador vai
nomear uma comissão, para regulamentar a lei da questão da imprensa”.
Na mesa estavam Rio Branco,
Joaquim Nabuco, Rodrigues Alves e o Almirante Eduardo Wandenkolk.
- É a questão da liberdade de imprensa, disse
Joaquim Nabuco, já presente nos escritos de meu pai.
- Eu sei, disse Rodrigues Alves, nós vamos
bater de frente com o Floriano.
- É um ditador, disse Nabuco.
- Sim, concordou o Almirante.
- Mas a questão da liberdade de imprensa vai
mais longe, disse Nabuco
- São incríveis as anomalias, disse Rui.
- Eu sei, disse Nabuco.
- Alguns exemplos viram anedota e galhofa.
Vimos, outro dia, o legislativo e o governador
do Amazonas, que é do grupo do Floriano, votarem, sancionarem e publicarem uma
lei, aprovando um tratado internacional celebrado pelo governo da União?
- Não acredito, disse Nabuco.
- Sim, respondeu Rui, foi Eduardo Ribeiro.
- O mais grave é que até hoje
não vimos divulgado este fato na imprensa fluminense, porque Eduardo Ribeiro é
protegido de Floriano.
Rui Barbosa se levantou, abriu
uma imensa gaveta, e veio até a mesa com um papel nas pequeninas mãos.
- Eis aqui, no seu teor verbo ad
verbum, o monumento, que possuímos na edição oficial, com as armas da
República.
Todos riram.
- Até um calouro de direito não
pode ignorar que os tratados são atos da soberania nacional
Rodrigues Alves interveio:
- Os Estados gravitam para a
servidão, disse ele.
- Os Estados estão submetidos ao
governo central.
- Este Eduardo Ribeiro quer ser
senador, quando acabar o mandato.
- Temos de impedir isso, disse
Rui.
Quando Eduardo Ribeiro faleceu,
Rui Barbosa escreveu um artigo em que acusava o morto de ter enriquecido às
custas do erário público.
23. A PORTA DAS MIL MORTES
- Morreu Eduardo Ribeiro! – gritavam nas ruas.
- Mataram Eduardo Ribeiro! – gritavam nas
ruas.
- Eduardo Ribeiro se suicidou! – gritavam nas
ruas.
- Como? Perguntou Scholz.
- Foi encontrado morto, perto da porta dos
fundos. Enforcado, com a corda de uma rede, sentado no chão.
- Estranho, comentou Scholz.
- Ninguém acredita nisso, disse Lima Silva.
A multidão se agitou. A população indagava. O
que tinha acontecido?
Era o dia 22 de outubro de
1900.
- Era honesto? Indagou Scholz.
- Não sei, respondeu Lima Silva.
- Qual a origem de sua força,
quando tudo e todos lhe eram tão contrários?
Lima Silva nada disse.
A noite já ia alta. Noite
sombria, amarga, aziaga. Ouviam-se, ao longe, rugidos de trovões. A cidade,
sinistramente silenciada, aguardava. Às vezes passava um vento soturno que
curvava os galhos das grandes árvores. Elas se agitavam e sussurravam como
gigantescos fantasmas da noite.
- Estava “doente”, em casa. A
doença era depressão, ou mesmo loucura.
- Morreu aos 38 anos de
idade!
Eduardo Ribeiro residia na
chácara junto do seu médico, Menélio Pinto, um alferes e três soldados. Sob
rigorosa vigilância.
Naquela noite estava agitado,
inquieto.
Pediu um copo de leite.
Quando o soldado voltou com o
copo, estava morto, enforcado com a corda do mosquiteiro.
O quarto tinha uma porta que
dava para o quintal escuro e desprotegido. Era fácil um assassino entrar por
aquela porta para matá-lo.
Ninguém investigou nada. Os
laudos sumiram.
Foi encontrado perto da porta,
enforcado, no chão do assoalho, a cabeça pendia para o lado, as costas na
parede, as pernas estendidas, vestido de roupa de dormir. Não havia sinais de
violência, luta.
Aquela frágil corda, presa por
uma pequena roldana no teto, não poderia ter sustentado seu corpo. Os olhos não
estavam arregalados, como dos enforcados. Os olhos estavam fechados. Não se fez
necropsia, laudo médico, nada. Não havia a marca da corda no pescoço da vítima.
O processo policial desapareceu dos arquivos da polícia.
Depois da sua morte, seus amigos
fugiram de Manaus, com medo. Quando se fez o inventário, o nome do suposto
filho não apareceu. Nem de sua prima e sobrinho. Surgiu o nome da mãe, Dona
Florinda Maria da Conceição, filha de escravos africanos. Dona Florinda
protestou em vão contra o desaparecimento de um piano e contra o surgimento de
uma dívida. Ele deixou um terreno na esquina das av. Eduardo Ribeiro com José
Clemente, outro em Umirizal. E a chácara. Sua fazenda desapareceu. Várias casas
que possuía não se leram no arrolamento dos bens imóveis.
Os documentos pessoais de
Eduardo Ribeiro não foram encontrados.
Depois de sua morte surgiram
várias acusações contra ele.
Falou-se pela primeira vez de
que seu pai também tinha morrido louco. Toda Manaus sabia que o pai era
descendente de escravos negros do Maranhão, mas desconhecia a loucura, a
hereditariedade, tema da época. A loucura explicaria o suicídio. Em todo o país
tornou-se moda acusar a gastança do seu Governo. Coelho Neto escreveu que o
novo Governador (Silvério Nery) ia tirar do lodo o Estado. Rui Barbosa chamou
Eduardo Ribeiro de “milionário”. \
Eduardo Ribeiro era muito jovem
quando assumiu o primeiro governo. Tinha 28 anos de idade.
- A morte entrou por aquela porta, disse Lima
Silva. A morte invisível, no escuro.
24. O TEATRO DE OURO PURO
Um dia Eduardo Ribeiro recebeu um requerimento
de Manuel Coelho de Castro. Nele o construtor tratava dos andaimes para a
montagem da cúpula do Teatro Amazonas e lista do pessoal empregado. No fim,
solicitava uma audiência com o Governador.
Ele entrou esbaforido na sala do chefe de
Estado. Era um homem gordo, redondo,
cara queimada de sol e usava uns grossos bigodes brancos que não cessava de
cofiar. Vestia terno de linho bege, gravata borboleta azul, sapatos verniz.
Suava muito, enxugava-se com um lenço de
cambraia branca, que punha e tirava do bolso a todo momento. No dedo exibia um
anel de ouro demasiado grande para sua pequenina mão gorda.
O Governador não o olhou.
Eduardo Ribeiro era homem seco, sério, pouco
amistoso. Vestia sua inseparável farda militar. Lia e assinava papéis.
- Pode sentar, - disse ele sem levantar a
cabeça para Manuel, apontando uma cadeira que havia em frente à sua mesa.
Aquele procedimento inamistoso atraía para o
mulato maranhense uma multidão de inimigos na elite amazonense. Após uma
audiência, quem saía do Gabinete do Governador era mais um inimigo, mesmo que
seu pleito tivesse sido atendido. Eduardo Gonçalves Ribeiro era mestre em fazer
inimigos e desagradar os amigos.
- O que deseja? – perguntou o Governador sem
olhar para o comerciante.
O gordo Manuel parou, pigarreou, e com a mais
gentil das vozes começou a falar. Via-se que ele tentava não irritar o
Governador, que tinha uma personalidade difícil:
- Senhor Governador... - começou Manuel de
Castro - todos esses anos eu tenho tocado as suas obras do teatro, junto com os
outros contratantes, tenho feito a minha parte com o maior dos zelos...
- Vamos direto ao ponto, disse asperamente
Eduardo Ribeiro.
Manuel ficou intimidado e quase não conseguiu
falar:
- O Senhor pode consultar Crispim do Amaral...
é impossível armar um andaime de tamanhas proporções... os custos... por aquele
preço... desde que Vossa Excelência mandou implantar aquela gigantesca cúpula
de vidro policromado no teto do teatro é impossível e...
- O quê? – gritou Eduardo Ribeiro. O quê?
Pensa que podemos dispor das verbas públicas à vontade! Eu tenho pressa! Eu
tenho pressa!
Naquele momento, entrou sem ser anunciado, o
secretário de estado Fileto Pires Ferreira, que foi falando:
- Governador, ele tem razão, disse Fileto
imediatamente. Eu tenho acompanhado de perto os custos daquela armação e estou
convencido que é impossível a construção do andaime por cima daquela estrutura
sem que faça uma reestruturação na tabela de custos. Vamos gastar o dobro dos
materiais...
- Fileto, gritou Eduardo, parece que este
teatro está... Fileto! O Teatro Amazonas não é de ouro puro! Fileto! Eu já nem
sei quanto já se gastou na construção do teatro...
- Sim, disse firme e calmamente Fileto Pires
Ferreira. Mas é um dos maiores e mais belos teatros do mundo, construído em
plena selva amazônica. Deve estar custando o dobro do que custaria se fosse
construído em Paris...
- Está bem, está bem, - disse Eduardo Ribeiro.
E num tom grossseiro, falou para Manuel de Castro:
- Entenda-se com o Secretário Fileto, Senhor.
E os dois saíram depois de se despedirem do
Governador. Eduardo não respondeu.
25. FILETO CHEGA AO FIM
O Governador Fileto Pires
Ferreira faleceu na sua residência na Rua Visconde de Itamarati, número
116, no Rio de Janeiro, sábado, dia 11
de agosto de 1917.
Tinha 51 anos. Crise de uremia.
Na época, não havia hemodiálise.
Morreu às 9:50 da manhã.
Deixou a viúva, D. Maria
Lucrécia Pires Ferreira e seis filhos: Alkíndar, Nair, Iberino, Iberê, Ivan e o
menino de 10 anos de idade Hélio.
O enterro foi às 16 horas no cemitério de São
Francisco Xavier.
Segundo o “Jornal do Commércio”
do Rio de janeiro do dia seguinte “deixou grande fortuna”. Era mentira. Fileto
morreu pobre.
No dia anterior, o Presidente da República
tinha assinado sua reforma, a pedido, no posto de General de Divisão.
A notícia do jornal omite o fato de ter sido
ele Governador do Amazonas. Só diz que ele foi “Diretor da Primeira Seção do
Grande Estado Maior do Exército”.
Com ele, acaba a história do grande Teatro
Amazonas.
O Teatro possuiu três construtores: José
Paranaguá, Eduardo Ribeiro e Fileto Pires Ferreira.
Paranaguá e Fileto vieram do
Piauí (como Thaumaturgo). Eduardo, do Maranhão. Dos três, somente Eduardo
Ribeiro é lembrado hoje. Erro histórico: Fileto desde que era deputado
trabalhou pela edificação. Fileto o concluiu. E o inaugurou. Fileto amava o Amazonas. Seus filhos tinham
nomes de índios. Seu primogênito ia chamar-se Alkíndar Ipiru Gipipodi Manukaba,
em homenagem a três poetas indígenas. A família protestou, não deixou, ficou
Alkíndar.
Sua esposa, D. Maria Lucrécia, de ascendência
inglesa, era irmã do Almirante Heráclito Belfort, Duque de Belfort, título
inglês.
O féretro saiu de sua casa, à tarde.
A Rua Visconde de Itamarati existe até hoje e
terminava no Derby Clube, hoje Estádio do Maracanã. Na época, era um bosque.
Por trás, passava um riozinho sem nome que ia até à Escola Militar de
Veterinária, depois Museu do Índio. O Derby Club não era tão rico como o
Jóquei. Arquibancadas de madeira.
A casa de Fileto, ali, tinha dois andares com
fachada de pedra. Em frente, uma escadaria em arco. No andar de baixo, num
quarto, morava o Dr. Guido de Sousa, solteiro até o fim da vida. Ao redor da
casa, um jardim.
Houve vários oradores no sepultamento. O mais
veemente foi Raul de Azevedo, que, comovido, disse:
“... Homem inteligente, de sólida cultura...
orador excelente, veemente, arrebatador de assistências, a sua frase tinha
calor... o discípulo mais amado de Benjamim Constant... Difícil será uma
síntese dos seus dois anos de governo. Recebeu o Estado com um deficit de quase
4.000:000$000, e em dezenove meses de governo entregou-o com um saldo em
dinheiro de quase 9.000:000$000, e o Amazonas sem dívidas.
O Dr. Fileto Pires Ferreira foi
um General e um Cidadão. Era um grande Homem”.
26. A PISTOLA ROSS EDINBURG
Naquela noite Waldemar Scholz descia a Avenida
do Palácio com o Barão de Solimões, Manuel Francisco Machado.
Machado era político, senador, latinista,
aliado de Guerreiro Antony e futuro Governador. Sempre na oposição, Machado
dirigia o jornal do partido, “O liberal”, cujas oficinas ficavam em sua própria
casa, na Rua Henrique Martins.
No Governo Pedro de Alcântara Bacelar, sua
casa foi bombardeada ao amanhecer pela artilharia inimiga a dez metros de
distância, do outro lado da rua.
Ele e sua família tiveram de fugir pelos
fundos escalando o muro e os seguranças da casa, que não fugiram, foram mortos
e os cadáveres arrastados pelas ruas de Manaus.
Nunca se fez inquérito policial sobre o
caso. Não se conta o caso.
Ele retirou-se para Óbidos, onde
morreu na miséria. Mas tinha sido Presidente da Província, ou Governador, era
Comendador da Ordem da Rosa, Comendador da Ordem de Cristo, Deputado
Constituinte de 1891 e Senador da República.
O fato está esquecido, apagado da história do
Amazonas até hoje.
Quando Scholz e Machado entraram na “Farmácia
Studart”, que ficava na esquina da Avenida do Palácio, hoje Eduardo Ribeiro,
com a Rua Municipal, hoje Sete de Setembro, foram recebidos por Sr. Carlos
Studart, o proprietário.
Studart era cearense. Filho de inglês. Estudou
farmácia em Salvador e depois voltou para Fortaleza, onde abriu sua “Farmácia
Studart” depois transferida para Manaus, onde corria muito dinheiro.
Em Manaus, Studart viveu 30 anos, fazendo 12 viagens
à Europa.
Em 1921 liquidou seus negócios em Manaus e
mudou-se para São Paulo, onde se tornou um próspero industrial, produzindo o
seu famoso “Leite de Colônia”, conhecido até hoje e invenção sua.
Studart morreu milionário, aos 103 anos, no Rio
de Janeiro.
Carlos Studart era homem franzino e baixo, e
tinha um problema vocal, que o impedia de pronuncia certas sílabas. Disse ele
com sua voz fanhosa:
- Que novas trazem os amigos?
- Como está nosso doente? - perguntou Machado
ao farmacêutico, referindo-se a Lima Silva.
- Melhorou. Parece ótimo. Está com ótimo
humor! Eu o vi ontem, sacudido como sempre.
Lima Silva tinha atravessado uma de suas
crises conjugais, mas Studart fabricava um remédio que Lima Silva tomava nessas
ocasiões, e que era uma fórmula especial que podia matar se tomada erradamente
e por isso só vendia para os amigos.
Ao sair da Farmácia, Scholz apressou-se a ir
sozinho para a casa de Lima Silva, que encontrou muito bem disposto.
Lá, Lima Silva levou-o para ver uma novidade,
que tinha comprado recentemente.
Abrindo uma gaveta, de lá tirou um estojo de carvalho.
- Veja isso, disse Lima Silva, orgulhoso.
Era uma pistola Ross Edinburgh.
O estojo tinha guarnições e fechos de prata
embutidos. O interior vinha forrado de seda de tons verde, e no verso da tampa
havia uma etiqueta com figuras e uma inscrição.
- Arma rara, disse Scholz. Arma excelente,
acrescentou, empunhando aquela jóia. É uma pistola escocesa. Perfeita, disse,
examinando a mira do cano octogonal, de ante-carga, que tinha gravado na parte
superior a inscrição "Ross Edinburgh", com figuras vegetais na
culatra. O fecho lateral de percussão trazia o mesmo tipo de gravação.
O alemão estava fascinado.
- Vamos à sopa, concluiu.
E saíram para jantar.
O que Lima Silva não disse era que, com aquela
arma, ele tinha acabado de matar sua mulher Marinalva e o ex-governado Eduardo
Ribeiro.
(FIM DO “TEATRO AMAZONAS”)
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