RETRATO DO VIRTUOSE
OTTO MARIA CARPEAUX
Os grandes violinistas, quando chamados pelo público depois do fim do concerto, deixam-se ainda arrancar algumas peças extras, umas danças ou capriccios inofensivos, valoriza-dos por dificuldades técnicas artificialmente acumuladas que deslumbram a platéia. Às vezes, entre esses extras aparecem peças algo diferentes, de dificuldade extraordinária, mas também de força elementar, quase demoníaca: a um grande poeta já sugeriram imagens das mais esquisitas — um minuto em salão aristocrático do Rococó, um assassínio por ciúmes, corais fúne-bres, ou remorsos violentos do criminoso, o grito de triunfo do diabo, até uma forte arcada de desespero interromper as visões fantásticas. Essas peças são de Paganini.
Biógrafos, libretistas e cineastas maltrataram-no bastante:
às vezes aparece como gênio sobre-humano, outras vezes como charlatão ridículo. Talvez fosse isto e aquilo ao mesmo tempo?
A vida de Nicolo Paganni foi mesmo sensacional como um filme, rápido e de fim abrupto. Nascera em Gênova como filho de um estivador que reconheceu cedo o talento musical do menino; o pai viveria explorando-o. Impôs ao pobre garoto exercícios intermináveis, dez, doze, catorze horas por dia, man-tendo-o trancado num quarto escuro. Mais tarde, Paganini con-servará esse “método”: como amante das Elisa Bacciochi e Paulina Borghese, princesas de estilo rococó na época napoleô-nica, trancou-se nas abandonadas vilas de caça de Parma e Lucca, ensaiando a execução de peças dificílimas em duas cor-das só, enfim em uma corda só. Também se aproveitou da so-lidão para estudar perante o espelho poses fantásticas, diabóli-cas, que assustaram depois os cortesãos. Rapidamente o sonho das cortes napoleônicas se desvaneceu. Para gostar daquelas poses só ficou o judeu inglês George Hanys, homem muito esperto, o primeiro grande empresário da vida musical do século XIX. Foi ele que levou o mestre, que contava então já com mais de 40 anos, para Viena. Em 1828, Paganini deu o primeiro con-certo, empolgando, subjugando o público da cidade de Beetho-ven. Em 1829 e 1831 repetiram-se em Berlim e Paris os êxitos sensacionais, devidos à virtuosidade extraordinária do violinista - e à sua apresentação não menos extraordinária. No palco apa-receu um sujeito alto, palidíssimo, magérrimo, vestindo fraque lamentável, curvando-se perante o público em reverências enor-mes, ridículas, sinistras, diabólicas. Contudo o recital começou com obras de feição clássica que o próprio Paganini compusera no estilo nobre do século XVIII; o seu concerto La Campanella é uma obra-prima à maneira de Corelli e Tartini, dos grandes mestres do passado. Depois, o salão aristocrático transforma-se em sala dos bailes fantásticos do Carnaval de Veneza, em lugar de reunião noturna das Bruxas, é assim como se chamam aque-las pequenas peças de Paganini - a mão esquerda do violinista toca acordes inéditos de três, de quatro tons, a velocidade cresce rapidamente, pizzicati infernais alternam com acordes sonoros de que o violino parecia incapaz, o virtuose já toca em uma corda só verdadeiras sinfonias, até uma forte arcada fazer desa-parecer, de repente, a visão diabólica. Assim Heine descreveu, num folhetim famoso, o concerto de Paganini. Depois, nova-mente as reverências meio cômicas, meio sinistras: com um sorriso sarcástico despede-se o mestre, carregando para o hotel um dinheirão tal como nunca um músico ganhara. Desaparece no dia seguinte, viajando ou antes fugindo para outra cidade. Dizia-se que deixam um cheiro de enxofre.
Já em Viena, na ocasião do primeiro concerto, os supers-ticiosos explicaram as artes extraordinárias do virtuose, por um pacto que teria concluído com o diabo; alegaram ter visto um homenzinho corcunda, muito suspeito em sua companhia. Em Paris — onde Heine o ouviu - acusaram-no de um assassínio misterioso; em Londres, do rapto de uma menina. Em Bruxelas, os católicos chegaram a vaiar o novo Fausto. De repente, Paga-nini desapareceu. Já amontoara bastante dinheiro? Ou então, o
próprio diabo o levara? Na verdade, morreu na Riviera, de tu-berculose da laringe. As autoridades eclesiásticas recusaram o enterro ritual. Deixou... Vinte e cinco milhões de francos, um Guarnierio preciosíssimo (guardado hoje no museu de Gênova) e sete Stradivarius, dos quais o melhor desapareceu sem vestí-gios. Assim como se perderam as armas do violinista Paganini. Da sua vida fantástica apenas ficou vaga reminiscência, como uma sombra na parede, como se fosse reminiscência de cinema.
Nunca mais um virtuose conseguiu tanto êxito, nem um Liszt, nem um Sarasate. Os virtuoses de hoje, então, são pobres diabos em comparação com Paganini, que o mais severo dos seus críticos contemporâneos, Fétis, comparara a Napoleão. Aí se vislumbra a explicação do fenômeno. A Europa de 1830 era, depois das tempestades da Revolução e das Guerras Napoleôni-cas, essencialmente apolítica. Governos patriarcais e polícias vi-gilantes nem permitiam a ocupação com os negócios públicos. Notícias de teatro e concerto encheram os jornais. Eram os dias áureos do pianista Liszt, da cantora Henriette Sountag, da bai-larina Taglioni. Em vez de a gente se bater nas barricadas, lu-tava-se nas ruas para tirar os cavalos do coche da cantora, para levar nos ombros o pianista. Paganini foi o maior entre esses Napoleão da sala de concerto. E aqueles dias idílicos e fantás-ticos não voltam mais. No entanto a explicação fica incompleta.
As nossas salas de concerto, hoje, são muito maiores do que naqueles tempos. Enche-as uma massa muito mais numerosa, capaz de tempestades de entusiasmo, violentas e contagiosas. Recursos inéditos de publicidade e da técnica conquistam o mundo aos cantores, aos pianistas, aos violinistas, que carregam cheques e mais cheques. Em comparação, Paganini foi um pobre-diabo. Também o seria na sala de concerto, porque aquelas artes inéditas que deslumbraram Viena e Paris são hoje domínio de todos os mestres do instrumento: todos sabem tocar acordes, bater pizzicati, usar uma corda só, fingindo polifonias, aumentar a velocidade até o público perder o fôlego. Muitos entre eles dis-põem de uma cultura musical pelo menos tão sólida como fora Paganini, embora lhes faltem as suas ligações com a grande
tradição dos Corelli e Tartini. Mas o que certamente lhes falta é a personalidade demoníaca; existe, conforme Nietzsche, um dir--se-ia genial. E no gênio, elemento mistificador que se aproxima do charlatanismo. Gênio e charlatão ao mesmo tempo, Paganini foi a expressão máxima, embora fugitiva, da música romântica.
No tempo de Paganini nasceu o culto romântico do génio; Carlyle é quase contemporâneo seu. Contemporâneo seu é, exa-tamente, Balzac, que foi, conforme Sainte-Beuve, o primeiro grão-mestre da “literatura industrializada”. Os que pagaram com preços fantásticos os camarotes nos concertos de Paganini foram os banqueiros do juste-milieu, os primeiros empresários de es-tradas de ferro. O culto romântico do gênio é uma espécie de reação desesperada da arte contra a época da industrialização. Os próprios concertos de música industrializaram-se, sendo transfe-ridos dos salões aristocráticos para as grandes salas públicas. A intimidade entre artista e conhecedor foi substituída pelo sensa-cionalismo. Até um Byron foi sensacionalista, encenando peran-te o público a sua própria pessoa. Paganini, homem de outros tempos, venceu porque também sabia encenar-se.
Com efeito, veio de outros tempos: filho do século XVIII, herdeiro da tradição sólida dos Corelli e Tartini, os seus concer-tos, como La Campanella, dão testemunho disso. Até os 40 anos de idade não pensou em tocar para o grande público. Para ele, mesmo depois da Revolução Francesa, a cultura musical do Rococó sobreviveu nas pequenas cortes napoleônicas da Itália. Mas em 1815 começou o século XIX. Do salão, Paganini pulou para o palco; foi um salto-mortal diabólico, transformando-o em feiticeiro do violino, em mistura curiosa de charlatão e prima-dona. A esse virtuosismo Paganini subordinou sua técnica iné-dita do instrumento. A essa técnica serviram recursos inéditos da publicidade, os artigos pagos nos jornais, os escândalos arranja-dos, os boatos diabólicos habilmente espalhados. E o diabo que realizou esses milagres infernais, e suspeito homenzinho corcun-da, foi Mr. George Hartys, o primeiro grande empresário. Fala-va-se muito, então, da avareza de Paganini, acumulando mi-lhões. Mas esse homem foi capaz de dar 25 mil francos de uma
vez para ajudar o gênio Berlioz, então desconhecido, pobre e ridicularizado. Na verdade, Paganini foi, nos tempos de adoles-cência do capitalismo, o primeiro artista que não quis dar de presente a sua arte, exigindo honorários decentes da parte de banqueiros e empresários de estradas de ferro. Foi mesmo o primeiro artista-capitalista. Na sala de concertos, sabia improvi-sar às maravilhas, assim como aqueles improvisaram especula-ções na Bolsa. Mas a sua técnica, nos seus negócios, era mais sólida. Foi possivelmente a única vez que se realizou a síntese completa e perfeita de grande arte e grande charlatanaria, reuni-das numa grande personalidade demoníaca.
Depois, a personalidade foi derrotada pela publicidade. A organização venceu a arte. A técnica tomou-se independente. O violino mecanizou-se. Os violinistas de hoje sabem fazer tudo o que Paganini sabia fazer, e mais. A propaganda é todo-poderosa:
até é capaz de inventar gênios, sendo já ninguém capaz de dis-tingui-los dos charlatães. Alguns contemporâneos vienenses de Paganini entristeceram-se porque a sua sombra diabólica fez esquecer a grande sombra de Beethoven, morto um ano antes do primeiro concerto do virtuose. Um século mais tarde, Paganini está esquecido, mas um Spengler prevê o dia em que Beethoven lhe acompanhará o destino: quando uma humanidade tecnica-mente civilizadíssima não verá mais nada numa partitura do mestre do que um farrapo de papel. Então, da nossa civilização inteira não ficaria nada do que uma sombra fantástica na parede, como se fosse reminiscência de cinema.