domingo, 27 de fevereiro de 2011

A VALSA DAS DEBUTANTES





Genesino Braga



As debutantes dançam a sua primeira valsa....
A ronda alígera dos corpos harmoniosos acorda uma esperança ideal de vida nova...
As notas lentas debulham sonhos, desfiam rosários de carícias mansas, acendem as lâmpadas de oiro do primeiro amor...
Tudo refulge no deslumbramento desta noite maravilhosa!
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As luzes põem lampejos de cristal nos ornatos geométricos da pista...
Ágeis, frágeis, adejáveis, os pés mimosos descrevem a fuga das borboletas inebriadas pela fragrância dos nectários...
Parece que a alma da valsa se desagrega na tonteação dos pés em pontas; e à forma volta, donairosa, pelo ritmo das plásticas aladas...
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As debutantes dançam a sua primeira valsa...
Rodam, rodeiam, rodopiam, giro-girando em braços afetivos, na louçania dos movimentos graciosos...
A felicidade tem sorrisos de sol pelos seus olhos fulgurais...
Por suas cabecinhas inquietas passam procissões de sonhos em silêncio...
Nasce a primeira ilusão, em sua infinita pureza.
Brota o Enlevo!
Surge a Emoção!
... e eis o amor!...
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Todo o ambiente é de fascinação paradisíaca.
Na pauta das três essências do mundanismo – a Elegância, o Cavalheirismo, a Euforia – sobreexcele o espírito da Beleza.
A festa é uma divinização da “menina-moça”, glorificação pagã do “entreaberto botão e entrefechada rosa”. É o noivado da graça e do Amor!...
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Das cabecinhas tontas esvoaçam as painas dos pensamentos felizes...
A debutante dança... Dança e sonha... A dança é o sonho rítmico dos movimentos; o sonho é a dança azul dos devaneios...
Bailar é um vôo impossível que o corpo ensaia pelos rosais da Vida...
Sonhar é a suprema respiração da alma...
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A debutante dança... Deslumbrada, absorta, feliz...
Lá em casa ficara a última boneca; e a dormir sobre ela o último beijo de criança...
Agora, é a ditosa senhorinha de olhos ternos e coração aberto para os anelos do amor...
Sobrevoa-lhe o espírito ingênuo, em seu enlevo sideral, a esperança de uma felicidade perene...
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Povoai de graça e bênçãos, meu Senhor e meu Deus, a valsa e o sonho bom da debutante!

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O SONHO DE ANO-BOM DA MOÇA LOIRA




Genesino Braga



A Moça-Loira entra na boite e os acordes do primeiro blue a arrebatam para a quintessência de seus doces devaneios...
A música é uma pasta melódica que escorre sons indolentes e sem pressa sobre o tablado da imaginação. Fermata infinita celebrando a suave tristura de algum recalque sem remédio... Sopro consolador da alma aflita, que suscita delitos impossíveis e gera o eflúvio dos pensamentos proibidos... Recado de todas as distâncias, no tempo, que a trompa emite e a alma capta no epitáfio dos ritmos desfalecentes... Solo exausto e sensual dos desesperos de sobreviver...
A Moça-Loira dança o blue no esvazamento da sua interioridade emocional. Dança e sonha... Uma espécie de êxtase votivo apazigua-lhe a carne ansiosa, em sua orgulhosa veemência de pecar. As sombras dos desejos insatisfeitos atropelam-se em fugas sensoriais, como imagens recalcadas da última tormenta. Sua alma é a paz; seu espírito é a indulgência dos apelos dilacerados; seu sangue a desmemória dos impulsos superados...
A Moça Loira sente, na nota elástica da música, a lenta filtração da mocidade. Os alaridos da entrada do Ano-Bom acordam-lhe os pensamentos sensatos na determinação do tempo. Há folhas de outono, já, moisacando paisagens à sua frente. A tênue penumbra ambiente traz-lhe a intimidade das vozes sentenciosas da vida... Mas, a Moça Loira é toda uma aceitação do irremediável, e seu fortuito pensamento de Ano-Bom. Dança e sonha... aos braços vigorosos que a enleiam, intencionais, outros mais sucederão, em líames táteis de volúpia, na impetuosa desintegração do plasma. Esquece, assim, os sopros rígidos do tempo e refugia-se na idéia vã de perpetuar o seu enternecido devaneio. As notas longas e lascivas daquele blue desapressado bem poderão suprimir todas as tintas da lembrança e deixarem-na parar naquele sonho, distanciada, em nostálgico recuo, dos festivos silvos e alaridos que saudavam, sim, a fuga de sua mocidade.
Ah!, o sonho de Ano Bom da Moça-Loira, no doce enlevo daquele lânguido blue de notas mansas...

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

SE TU PERDESSES A BELEZA...









Genesino Braga




Se tu perdesses a beleza... e o olhar intenso e a fala musicalizada, - ficarias sendo, não a mutilação da Obra Perfeita, mas a transfiguração da Obra Perfeita.

A pacificação da carne ansiosa, a sombra de êxtase nos olhos áridos, a suave tristura de uma boca sem canções, - tudo acordaria em ti uma alma sensorial de superfícies brandas, com a reprodução calada dos ecos todos que afirmam a força e a energia da Criação.

Irias gravar, nas cicatrizes dos pensamentos apaziguados, a doçura das noites de veludo que abrandaram as tuas ânsias. Afloraria, na tua saudade, a memória das imagens recalcadas no clamor dos apelos, para que as sombras dos instantes imperecíveis se transfundissem no respeito humano que a integridade de teus desígnios obrigaria.

Então, feito milagre de transmigração, a singeleza de tua nova consciência daria à vida a excelsa explicação do teu amor. Seria a libertação da alma postiça que teu corpo vestia, ficando-lhe a delícia de poder absorver, para indulgência e redenção, as essências da beleza incorpórea.

Ascenderias à Perfeição! Decifrarias no perdão do teu corpo sem desejo, o imutável segredo da composição estética da vida. E o doloroso fundo da tua natureza melancólica teria a participação da felicidade imaterial.

... e uma outra espécie de formosura – a Harmonia Interior – surgiria em teu destino, como um fluxo de redenção espiritual...

Oh!, se tu perdesses a beleza...

domingo, 20 de fevereiro de 2011

RETRATO DO VIRTUOSE










OTTO MARIA CARPEAUX



Os grandes violinistas, quando chamados pelo público depois do fim do concerto, deixam-se ainda arrancar algumas peças extras, umas danças ou capriccios inofensivos, valoriza-dos por dificuldades técnicas artificialmente acumuladas que deslumbram a platéia. Às vezes, entre esses extras aparecem peças algo diferentes, de dificuldade extraordinária, mas também de força elementar, quase demoníaca: a um grande poeta já sugeriram imagens das mais esquisitas — um minuto em salão aristocrático do Rococó, um assassínio por ciúmes, corais fúne-bres, ou remorsos violentos do criminoso, o grito de triunfo do diabo, até uma forte arcada de desespero interromper as visões fantásticas. Essas peças são de Paganini.
Biógrafos, libretistas e cineastas maltrataram-no bastante:
às vezes aparece como gênio sobre-humano, outras vezes como charlatão ridículo. Talvez fosse isto e aquilo ao mesmo tempo?
A vida de Nicolo Paganni foi mesmo sensacional como um filme, rápido e de fim abrupto. Nascera em Gênova como filho de um estivador que reconheceu cedo o talento musical do menino; o pai viveria explorando-o. Impôs ao pobre garoto exercícios intermináveis, dez, doze, catorze horas por dia, man-tendo-o trancado num quarto escuro. Mais tarde, Paganini con-servará esse “método”: como amante das Elisa Bacciochi e Paulina Borghese, princesas de estilo rococó na época napoleô-nica, trancou-se nas abandonadas vilas de caça de Parma e Lucca, ensaiando a execução de peças dificílimas em duas cor-das só, enfim em uma corda só. Também se aproveitou da so-lidão para estudar perante o espelho poses fantásticas, diabóli-cas, que assustaram depois os cortesãos. Rapidamente o sonho das cortes napoleônicas se desvaneceu. Para gostar daquelas poses só ficou o judeu inglês George Hanys, homem muito esperto, o primeiro grande empresário da vida musical do século XIX. Foi ele que levou o mestre, que contava então já com mais de 40 anos, para Viena. Em 1828, Paganini deu o primeiro con-certo, empolgando, subjugando o público da cidade de Beetho-ven. Em 1829 e 1831 repetiram-se em Berlim e Paris os êxitos sensacionais, devidos à virtuosidade extraordinária do violinista - e à sua apresentação não menos extraordinária. No palco apa-receu um sujeito alto, palidíssimo, magérrimo, vestindo fraque lamentável, curvando-se perante o público em reverências enor-mes, ridículas, sinistras, diabólicas. Contudo o recital começou com obras de feição clássica que o próprio Paganini compusera no estilo nobre do século XVIII; o seu concerto La Campanella é uma obra-prima à maneira de Corelli e Tartini, dos grandes mestres do passado. Depois, o salão aristocrático transforma-se em sala dos bailes fantásticos do Carnaval de Veneza, em lugar de reunião noturna das Bruxas, é assim como se chamam aque-las pequenas peças de Paganini - a mão esquerda do violinista toca acordes inéditos de três, de quatro tons, a velocidade cresce rapidamente, pizzicati infernais alternam com acordes sonoros de que o violino parecia incapaz, o virtuose já toca em uma corda só verdadeiras sinfonias, até uma forte arcada fazer desa-parecer, de repente, a visão diabólica. Assim Heine descreveu, num folhetim famoso, o concerto de Paganini. Depois, nova-mente as reverências meio cômicas, meio sinistras: com um sorriso sarcástico despede-se o mestre, carregando para o hotel um dinheirão tal como nunca um músico ganhara. Desaparece no dia seguinte, viajando ou antes fugindo para outra cidade. Dizia-se que deixam um cheiro de enxofre.
Já em Viena, na ocasião do primeiro concerto, os supers-ticiosos explicaram as artes extraordinárias do virtuose, por um pacto que teria concluído com o diabo; alegaram ter visto um homenzinho corcunda, muito suspeito em sua companhia. Em Paris — onde Heine o ouviu - acusaram-no de um assassínio misterioso; em Londres, do rapto de uma menina. Em Bruxelas, os católicos chegaram a vaiar o novo Fausto. De repente, Paga-nini desapareceu. Já amontoara bastante dinheiro? Ou então, o
próprio diabo o levara? Na verdade, morreu na Riviera, de tu-berculose da laringe. As autoridades eclesiásticas recusaram o enterro ritual. Deixou... Vinte e cinco milhões de francos, um Guarnierio preciosíssimo (guardado hoje no museu de Gênova) e sete Stradivarius, dos quais o melhor desapareceu sem vestí-gios. Assim como se perderam as armas do violinista Paganini. Da sua vida fantástica apenas ficou vaga reminiscência, como uma sombra na parede, como se fosse reminiscência de cinema.
Nunca mais um virtuose conseguiu tanto êxito, nem um Liszt, nem um Sarasate. Os virtuoses de hoje, então, são pobres diabos em comparação com Paganini, que o mais severo dos seus críticos contemporâneos, Fétis, comparara a Napoleão. Aí se vislumbra a explicação do fenômeno. A Europa de 1830 era, depois das tempestades da Revolução e das Guerras Napoleôni-cas, essencialmente apolítica. Governos patriarcais e polícias vi-gilantes nem permitiam a ocupação com os negócios públicos. Notícias de teatro e concerto encheram os jornais. Eram os dias áureos do pianista Liszt, da cantora Henriette Sountag, da bai-larina Taglioni. Em vez de a gente se bater nas barricadas, lu-tava-se nas ruas para tirar os cavalos do coche da cantora, para levar nos ombros o pianista. Paganini foi o maior entre esses Napoleão da sala de concerto. E aqueles dias idílicos e fantás-ticos não voltam mais. No entanto a explicação fica incompleta.
As nossas salas de concerto, hoje, são muito maiores do que naqueles tempos. Enche-as uma massa muito mais numerosa, capaz de tempestades de entusiasmo, violentas e contagiosas. Recursos inéditos de publicidade e da técnica conquistam o mundo aos cantores, aos pianistas, aos violinistas, que carregam cheques e mais cheques. Em comparação, Paganini foi um pobre-diabo. Também o seria na sala de concerto, porque aquelas artes inéditas que deslumbraram Viena e Paris são hoje domínio de todos os mestres do instrumento: todos sabem tocar acordes, bater pizzicati, usar uma corda só, fingindo polifonias, aumentar a velocidade até o público perder o fôlego. Muitos entre eles dis-põem de uma cultura musical pelo menos tão sólida como fora Paganini, embora lhes faltem as suas ligações com a grande
tradição dos Corelli e Tartini. Mas o que certamente lhes falta é a personalidade demoníaca; existe, conforme Nietzsche, um dir--se-ia genial. E no gênio, elemento mistificador que se aproxima do charlatanismo. Gênio e charlatão ao mesmo tempo, Paganini foi a expressão máxima, embora fugitiva, da música romântica.
No tempo de Paganini nasceu o culto romântico do génio; Carlyle é quase contemporâneo seu. Contemporâneo seu é, exa-tamente, Balzac, que foi, conforme Sainte-Beuve, o primeiro grão-mestre da “literatura industrializada”. Os que pagaram com preços fantásticos os camarotes nos concertos de Paganini foram os banqueiros do juste-milieu, os primeiros empresários de es-tradas de ferro. O culto romântico do gênio é uma espécie de reação desesperada da arte contra a época da industrialização. Os próprios concertos de música industrializaram-se, sendo transfe-ridos dos salões aristocráticos para as grandes salas públicas. A intimidade entre artista e conhecedor foi substituída pelo sensa-cionalismo. Até um Byron foi sensacionalista, encenando peran-te o público a sua própria pessoa. Paganini, homem de outros tempos, venceu porque também sabia encenar-se.
Com efeito, veio de outros tempos: filho do século XVIII, herdeiro da tradição sólida dos Corelli e Tartini, os seus concer-tos, como La Campanella, dão testemunho disso. Até os 40 anos de idade não pensou em tocar para o grande público. Para ele, mesmo depois da Revolução Francesa, a cultura musical do Rococó sobreviveu nas pequenas cortes napoleônicas da Itália. Mas em 1815 começou o século XIX. Do salão, Paganini pulou para o palco; foi um salto-mortal diabólico, transformando-o em feiticeiro do violino, em mistura curiosa de charlatão e prima-dona. A esse virtuosismo Paganini subordinou sua técnica iné-dita do instrumento. A essa técnica serviram recursos inéditos da publicidade, os artigos pagos nos jornais, os escândalos arranja-dos, os boatos diabólicos habilmente espalhados. E o diabo que realizou esses milagres infernais, e suspeito homenzinho corcun-da, foi Mr. George Hartys, o primeiro grande empresário. Fala-va-se muito, então, da avareza de Paganini, acumulando mi-lhões. Mas esse homem foi capaz de dar 25 mil francos de uma
vez para ajudar o gênio Berlioz, então desconhecido, pobre e ridicularizado. Na verdade, Paganini foi, nos tempos de adoles-cência do capitalismo, o primeiro artista que não quis dar de presente a sua arte, exigindo honorários decentes da parte de banqueiros e empresários de estradas de ferro. Foi mesmo o primeiro artista-capitalista. Na sala de concertos, sabia improvi-sar às maravilhas, assim como aqueles improvisaram especula-ções na Bolsa. Mas a sua técnica, nos seus negócios, era mais sólida. Foi possivelmente a única vez que se realizou a síntese completa e perfeita de grande arte e grande charlatanaria, reuni-das numa grande personalidade demoníaca.
Depois, a personalidade foi derrotada pela publicidade. A organização venceu a arte. A técnica tomou-se independente. O violino mecanizou-se. Os violinistas de hoje sabem fazer tudo o que Paganini sabia fazer, e mais. A propaganda é todo-poderosa:
até é capaz de inventar gênios, sendo já ninguém capaz de dis-tingui-los dos charlatães. Alguns contemporâneos vienenses de Paganini entristeceram-se porque a sua sombra diabólica fez esquecer a grande sombra de Beethoven, morto um ano antes do primeiro concerto do virtuose. Um século mais tarde, Paganini está esquecido, mas um Spengler prevê o dia em que Beethoven lhe acompanhará o destino: quando uma humanidade tecnica-mente civilizadíssima não verá mais nada numa partitura do mestre do que um farrapo de papel. Então, da nossa civilização inteira não ficaria nada do que uma sombra fantástica na parede, como se fosse reminiscência de cinema.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

PÊNDULO QUEBRADO






Alvaro Maia










O implacavel cronometro da vida,
nos mecânicos giros errabundos,
ao bater os minutos e os segundos,
vai ficando com a órbita partida.
Enquanto corre o pêndulo, na lida
de revolver as eras nos seus fundos,
surgem do nada gêneses de mundos
e ao nada volta o que nao tem saida.
Corpo, frágil ponteiro da existencia,
coração, que alimentas e transformas,
perdestes o claror da adolescencia...
Mas, nas lutuosas noites merencórias,
haveis de reviver por novas formas
para a ressurreição de novas glórias.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Dias e noites










AFONSO DE CARVALHO





Dias e noites


Os dias e noites são de uma tepidez mortal, e dias assim não convidam a pensar. Há uma exaUstão de ferro candente sobre as coisas do mundo, sobre a terra e sobre as águas, e os nossos corações sofrem as angústias de todos os tormentos das horas perdidas, as horas que não pudemos viver. É Novembro que se aproxima, amor. Bem sabes, querida, que este pode-ria ser um mês de alegrias, em que cantássemos aleluias de ressurreição, um mês em cujo inicio eu estaria te ofertando poemas de amor, em surdina, somente para as teus sentidos ou-virem, apenas para o teu coração comover. Não será assim, todavia, anjo meu. Para mim, o mês que se aproxima é uma quadra de recordações, e eis que me perco a meditar, não pen-sando nas glórias da existência, que não as quero, mas em ti, amor imortal, em ti somente. Que será de nós, amanhã? Pensamentos, palavras, emoções, tudo gira em torno de tua mara-vilhosa pessoa, tu, que és única, que és insubstituível, que estás presente em todas as minhas horas vazias, como uma obsessão e como uma loucura de que não me quero curar, para a qual não há remédio. Farei versos a ti. Novembro se aproxima, e com ele, e durante ele, meu velho coração não terá outro destino: só tu o ouvirás, só contigo ele estará. Ninguém mais.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Danae e a chuva de oiro




IMAGEM Gustav Klimt - "DANAE"


Genesino Braga






Era uma vez linda princesa...

A lenda é meiga, ingênua e doce...

...e meiga ingênua e doce era melíflua Danae, filha única de Acrísiø, Rei de Argos, vivendo em sonhos a existência que os deuses bons lhe conferiam.

Num promontório sobre o Inacos, - o rio das fábulas dormidas — a virgem hauria os bens da vida, tinha a seus pés os rapsodos, tinha a suas mãos fadas benignas... Nobre e sensível castelã, de suas janelas ogivais olhava os pássaros alados, ouvia cítaras plangentes, ouvia épicos heróicos, que os ventos sísmicos das Cícladas traziam, em músicas vibráteis, a seus anímicos cismares...

Danae sorria e era feliz...

Seu negro olhar de noite flébil pousava brando nas paisagens que os nobres muros do castelo rispidamente circundavam. Seus lábios doces só se abriam a balbúcies pueris, Vênus de corpo escultural, sangue sem apelos nem desejos, não tinha ardor no coração. Não tinha Príncipe Encantado, não tinha anseios de noivado, não tinha dor, não tinha amor...

Danae era um sopro de blandície...

Danae era a paz da Criação...


Um dia, oráculo ardiloso, — prossegue o lúcido raconto — ao Rei prediz: morte inopina, às mãos de um neto, ele teria, em dia infausto do porvir.

O Rei medita e pensa em Danae, a linda e fúlgire princesa, a virgem e casta flor do Reino, a filha amada...

Mas, - rei é rei e a vida augusta, a realeza e o trono invicto devem ser logo preservados...

Toda de bronze, exposta aos ventos, ereta, altíssima, imponente, a torre-cárcere se ergueu no promontório sobre o golfo de ondas mansas, fugidias... Mandara o Rei edificá-la para encofrar a castidade da meiga e cândida princesa... Bem alto, em cela luxuosa, entre janelas gradeadas, no extremo andar da torre heril, a moça penitenciava a inibição de amor provável e de pecado original...

O velho eunuco-carcereiro trazia-lhe flores e frugais, contava lendas melancólicas de rapsodos passionais...

Danae, em seus pérfidos desígnios, - flor de inocência e de indulgência! – cumpria sem mágoas seu fadário...

Danae, em silêncio, meditava, fitava o muito azul do céu, errando em sonhos e quimeras, pedindo aos deuses proteção... Recorda Zeus em seus noivados, pensa em Semele fecundada, pensa em Latona, mãe de Apolo, pensa Diana, Ceres, Io, em Mnemosina, em Alemena...

Virá do Olimpo a redenção!...

Eis que, em noite silenciosa, de ventos calmos, sem fragor, de pulcra ronda sideral, estranha chuva a torre envolve...

E chuva de oiro, luzidia, de fios aurifulgentes, joiando o âmago da noite, doirando o céu, doirando o ar...

Os fios luzentes, insolentes, penetram as grades da prisão e caem em volúpia sobre a virgem noite, explêndida, a dormir...

Compreensão... Revelação...

É Zeus, na sua metamorfose, divinamente enamorado, que, em seu poder de encantação, em oiro todo transformado, a bela moça enlaça e ameiga, em posse olímpica e sensual!...

Danae é o abandono sensorial, em seu estado de doçura, entregue ao ímpeto do deus, na graça íntima do amor...

Consumação... Concepção...

...e a lenda fúlgure prossegue: nasce Perceu e o Rei, irado, Danae e o filho atira ao mar ...

As ondas levam os renegados a terras outras do sem—fim, aonde se salvam e são felizes e vivem muito até que, um dia, os vaticínios do advinho se cumpram em fórmulas fatais...

A história mítica de Danae define símbolos morais. Transportam as ânsia dos milênios, esquemam lúgubres desígnios rememorados na consciência do fabulário emocional.

Danae reclusa e a chuva de oiro...

Danae passiva em doce oferenda de amor aos deuses vontadosos, para que, assim, de suas entranhas, surjam outros deuses protetores, ou nasçam ídolos e heróis.

Seiva do céu é a chuva de oiro em solo virgem, fecumdante, gerando safras e plantéis...

Pluviável bênção aurifulgente, que acorda os gênios e inspira os poetas, na enunciação da voz de Deus...

A chuva de oiro é a emanação da graça lírica do amor, essenciada de poesia, na ingênua lenda original...

Danae é o esplendor das germinais, nas férteis dádivas do amor, a reflorir pelas idades em mudas ânsias sublimadas nas espirais dos sonhos vãos.

Dai chuvas de oiro a Danaes outras, na torre altíssima dos sonhos, - e eis triunfal o ardil dos homens na trama poética das lendas, que se renovam pelos tempos e multiplicam-se no mundo, em tempestades hibernais de trovas, crônicas e cânticos de amor, de sonho e poesia...

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

ROTEIRO DA TAPAJÓS








ROTEIRO DA TAPAJÓS


AFONSO DE CARVALHO


Se voce der uma espiada na praça de Sao Sebastiao, principalmente acontecendo isto em noite de lua, voce poderá ver que ela deve ter sido uma praça bonita, no tempo em que esta era uma cidade risonha. Nao vamos falar aqui a respeito da noite, porque Manaus, toda ela, e uma cidade horrivel quando o sol se vai e é possivel que voce nem possa encontrar as praças e as ruas que nela existem, porque estao escuras, sujas, maltratadas, feias. A ausência da luz é sentida nessas ocasioes, a boa lua dos namorados, a lua dos que teimam em ser notivagos, e dos poetas, que ainda existem. Sao Sebastiao, deve ser dito, é uma praça amada. Ostenta o lindo monumento de bronze, as calçadas carijós e a igreja do santo, que foi capitao e foi martir, porque preferiu flcar do lado dos perseguidos, traindo a Cesar, de quem recebia soldo. Mas aqui, como o assunto nao é bem a praça, e quero me referir a rua que nasce dela, falarei nao só da igreja como tambem da mercearia de seu Manuel, que fica na outra esquina, para depois contar o caso em miudos, como é meu desejo assim fazer. A igreja de Sao Sebastiao, que é a nossa paróquia, ao que sei dela, foi construida por um frei Jesualdo Machetti. Na entrada, do lado direito, voce vera que tem uma placa de marmore e nessa placa, alem do nome do frei, há uma data em algarismos romanos: MDCCCLXXVIII, que uma pessoa entendida me contou que, traduzida para o nosso conhecimento, quer dizer 1878. A igreja pertence aos capuchinhos e todos os domingos la estamos, ouvindo a missa, quando frei Jose faz uma pregaçaozinha que ninguem entende, va1endo pela intençao. Tem pelas paredes murais de De Angelis e penso que São Sebastiao nao sera a única igreja da terra que possue vitrais. Frei Jose é um grande trabalhador e nesta condiçao deve ter visto o nascimento da rua dos Tapajos, que, como disse, nasce na igreja dele. Sou um tapajó, sabeis. Falo hoje dos tapajós e do que existe de bom na taba deles. Seu Manuel, no canto, vende sorvetes e aperitivos, trabalhando, ele me disse, 18 horas por dia. Um portugues simpatico, de cara alegre.Se ficar rico, que ninguem se admire. Sua mercearia é frequentada e seu Manuel sabe ser comerciante. Diz gracinhas para as domesticas das cadernetas, possue um jipe da marca Wills, e assim vai levando. Seu Manuel é homem respeitado na rua Tapajos, sua mercearia tem fama na redondeza, o que é merecido, sem duvida. Aqui, no fundo da igreja é a residencia dos capuchinhos e mais adiante, se voce for subindo, encontrara a Delegacia de Saude Federa1, confrontando a outra mercearia, que tem como dono um outro portugues, o sr. Monteiro. Deste lado esta o Luso, que apesar de ser "Sporting Clube" exibe apenas Pastorinhas e promove bailes retumbantes em datas certas do ano. As Pastorinhas do Luso sao famosas e dos bailes nem é bom falar. Animadíssimos, os soalho treme e a orquestra pode nao ser um primor, mas que ajuda, ajuda. No numero 154 moro eu, um dos tapajós mais antigos da taba. Com portas para a rua, de noite as cadeiras vão para a calçada e fica-se vendo as proesas da Tereca (é a gata).






(Vozes azuis. Manaus, Sérgio Cardoso, 1956).

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